quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Menino e Menina

Sabe-se, que de alguma forma, lá no final daquela cidade, entre cochichos e "ouvichos", diz e me disse, havia aquela história de arrepiar os cabelos até do coração: Magno Cordeiro, rapaz quase homem, era, por si só, o personagem principal. Desde criança andava com Luísa e beijava seus cachos e brincava de par. E até que ganhassem corpo e pensamento de quem já cresceu: andavam de mãos dados por lá e por cá, pra qualquer um ver, qualquer um olhar.
Eis que vem o primeiro amor de Magno e - que surpresa- não era Luísa. A moça, ou melhor: mulher, tinha mais de 12 anos a sua frente e sabia fazer jeitos e trejeitos que nem imaginava Luísa. O pegou com um olhar, mão na boca, batom vermelho. E depois de o pegar, lhe caçou com um beijo. E aí o menino, mal crescido, franzino, achou decerto que cresceu e ficou com ares de homem. Luísa não o reconheceu: andando espigado, nariz empinado, braço dado com aquela... bem, essa estória foi assim que começou.
Luísa chorou, derramou bastante lágrimas, mas mal teve tempo de pensar demais: seu corpo aflorava, seus cachos abriam e seus pés a guiavam pras danças e festas que começava a descobrir que existia. E seu corpo moldava mto bem no corpo dos muitos rapazes que a chamavam pra dançar e ensinar seus passos tímidos de moço. Muitos apaixonados, encantadas, querendo beija-la, ama-la, casar com ela. E ela sorrindo a uns e outros, descobrindo todo o efeito do balançar de seus cachos e do som do seu sorriso.
Magno bebia, bebia mto. Aquela mulher o deixou, o trocou por outro: mais moço. Virara o bêbado da cidade, sujo, dormira em praça, dormira em ruas e brigava em festas daquele tipo, em que Luísa dançava.
Depois da última virada, daquela cachaça, resolveu fazer o que devia
Pegou, pelo braço, adivinha: Luísa.
Ela se virou e fechou os olhos, incomodada com o cheiro de cachaça. Magno, inebriado, vendo torto, vendo nublado,tascou um beijo bêbado, urgente, qualquer. O primeiro dela. O último dele. Suado, molhado, violento. Insano.
Mal acabou e Luísa fez o que era certo: sua mãos, certas do que queriam, seguiram pra um estalo, bem em meio ao rosto do bêbado. Olhou pra saber onde bateria e viu: entre trapos e farapos, era o seu Magno. A mão parou, a tapa nunca existiu. Virou-se correndo, as lágrimas escorrendo, cegando, fazendo-a tropeçar uma, duas, outra vez.
E o bêbado não desmaiara com a primeira pancada na cabeça, demorava bastante, sentindo cada pé e mão que se fechavam contra ele, o cobriam, causando-lhe dor.

Noite na cidade:
Ele, desmaiado e apanhado em meio da praça, não sonhava mais com nada. Ela, acordada, deixando cair as lágrimas, pensando em como seria, em como eram, sonhando que nada fosse assim. Que fosse amor...

Parece que ele, Magno, acordou e, por um instante, afastando a embriaguez, soube que beijara Luísa. E soube, com toda a certeza de sua vida, que não havia outra, nunca houvera nada: existira foi o medo do estremecer do seu corpo ao beijar seus cachos, do pular em seu coração qdo apertava a mão dela, das pernas bambas quando ela se aproximava, do jeito que a olhava quando nadavam sem roupa, da pancada no peito quando ouvia uns tantos falarem dela, do piscar dos seus olhos, do som do sorriso, da vontade de beijar....crianças, apenas, crianças.... tanto medo, fugira: encontrara aquela mulher, amara. Amara Luísa nos braços dela. Afugentara em seu corpo o seu desejo, queixava em seus ombros o seu ciúme, bebia em cachaças de festas as danças dela. Bateu e arrumou brigas com quem a tocou. Apanhava com um sorriso, batia com outro: vingava-se com todas as forças das danças que eram dele. Quase matara, quase morria.

Nessa vez, apenas nessa, a desraça veio com um beijo: sabia os pensamentos do desgraçado que dançava com ela, ouvira entre garrafas quando ele falou. Protegeu Luísa dos enganos daquele. E o beijo afastara ele, afastara tudo, o mundo, a morte, a vida. Valia cada dor em seu corpo, cada parte quebrada.
E, agora, nesse momento, podia, muito bem, fechar os olhos e morrer. Lutou com a escuridão do fechar das pálpebras. Viu o último sol brillhar em seu rosto. Imaginou, por um instante, que ela o chamava, que estava ali. Apertou as mãos de sua imaginação. E sorriu.

Sol

Adormecida de sono sem fins, tentou evitar o sol que entrava pela janela.
Em seu pequeno quarto não haviam mais cortinas.
Foram rasgadas pela última noite em que ele existira em sua vida.
Mal podia lembrar de seus olhos - que olhos!- lhe dando a certeza de que era amada, que era viva, que estava ali.
Doía.
Doeu bastante quando ele foi.
Com um chamado, apenas, saiu de sua porta e a trancou por dentro.
-Não saia! É tarde. Eu vou.
Ela quis sair, quis ir com ele, quis salvar sua vida, salvar-se do medo que seria quando ele não mais voltasse.
E hoje, acordando e indo olhar seu triste rosto no espelho, via, bem claramente: era ela sem ele, sua imagem gritava. As marcas de lágrima em seu rosto, os olhos que mal abriam, incomodados com a luz do dia, com o amanhecer, com qualquer sol em sua vida: ansiosos pela noite sem fim, pela escuridão...
Ela que antes, tão forte, carregava em suas costas todo o peso do mundo. E chorava por tantos e chorava por outros. Hoje, fechada em si, não havia espaço pra ninguém. E nem pra amar qualquer pessoa que fosse. Lágrimas dedicadas a si mesmo. Cantando sua música triste...

... O sol a acordava todo dia e gritava com ela. E suas cortinas continuavam rasgadas como se, no fundo, ela ainda quisesse ser iluminada.
Nada mais havia entre o sol e o por do sol.
Havia, quem sabe, a certeza de que tudo acabaria.
E uma leve esperança de que permanecesse.
Pra lá do que havia, nao sei.
Há incertezas e dúvidas sobre o que não existe.
Pra nós.