sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Outro encontro na Sertanense (editar)

Eu me lembro, embora não com precisão.

Quando fecho os olhos, quase sinto os paralelepípedos antigos encostando no solado do calçado, os odores desagradáveis mas afetivamente conhecidos, vislumbro as cores de tintas desbotadas dos edifícios, a beleza consumida das ruas projetadas para nunca serem abandonadas.

Eu vejo as lojas passando à minha direita e à minha esquerda, farmácias, padarias, lanchonetes seculares, uma ponte de ferro atrás unindo um lado ao outro da cidade, os barulhos dos passos atravessando da Rua Nova à Imperatriz, aquela parede com poesia de Ariano pichada e com cheiro de mijo que poderia evitar passar perto, mas que era irresistível.

Vejo as igrejas nas ruas, as pequenas praças de fontes vazias, os pombos no alto, no céu azul ensolarado, a quantidade enorme de transeuntes, um mar gigante de pessoas e indigentes transmutando papelão em casas. 

E eu me lembro, embora não com precisão, das tantas  vezes em que caminhei, senti e vivi o centro da cidade. Do cheiro dos sebos, dos garimpos animadores, do brilho do vidro e pulseiras dos relógios enfileirados nos camelôs, dos ônibus passando com menos cuidado, menos conforto e mais passageiros do que deveriam. 

E entre rostos e buzinas de carros, também me vejo, ansiosa, em frente ao cinema São Luís, tomando todas as direções  que me levam ao teu encontro. Cabelo longo, quase cobrindo a mochila das costas, inconsequentemente de salto e de preto. Invariavelmente de preto

Da nossa família fosse a única que resolveu morar longe, saindo de Olinda para Boa Viagem. Da minha família fosse aquela que me acolheu e adotou quando minha mãe quase morreu na mesa de parto. Da minha família, sempre lembro que teus olhos eram os mais compreensivos e o teu apoio incondicional. 

E é claro que os caminhos da cidade continuam me levando  ao teu encontro, mesmo que a definitividade da morte não faça disso possível, mesmo que seja com gosto de lágrimas e um amargor de saudade que eu te vejo me esperando, em frente à lanchonete Sertanense da Rua Nova, para dividirmos um lanche, um misto, uma cartola e uma coca gelada, sentadas no balcão.  


domingo, 5 de novembro de 2023

Uma saudade chamada xadrez (editar e melhorar o final pra sábado)


Eu me lembro daquela mesa de xadrez, naquele encontro de outra hora em que, vivo, você me ensinou os primeiros movimentos.

E eu me lembro de não ter apreendido sequer uma norma que conduz o jogo, mas de ter achado fascinante e de continuar achando fascinante mesmo agora.


E eu me lembro que era noite, uma viagem, uma cidade, Cidade das Flores, em que impensadamente você nos carregou pra conhecer.


Eu lembro da longa distância de lá até nossa casa, do medo nas curvas da Serra das Russas, do play do k7 no stereo do carro, de revezarmos Xuxa e Roberto Carlos, das cruzes depositadas nas beiras das estradas. 


Eu me lembro de ter sido embalada pela música, de cada pose pras fotos, de ter comido pizza à noite, de termos dormido todos no mesmo quarto e de um parque de nome estrangeiro, de um arquiteto holandês.


Da praça cheia de flores, dos canteiros enfeitando a avenida, das arvores altas, pinheiros tocando as nuvens, da saudade na partida e de ter torcido pra voltar.


Hoje, vivendo na cidade que me encantara e revisitando o local em que quase aprendi xadrez, não encontrei a mesa no hall de recepção da entrada.

Percorri os corretores, revivendo doces momentos fantasmas, as fotos antigas nos quadros emoldurando tempos que não voltam mais. Pisos decorados, bancos vazios, parques infantis sem gritos, janelas fechadas nas casas, um salão de jogos empoeirado no final de tudo. 

E a mesa. 

Gavetas ao redor, bispos, reis, rainhas, cavalos, torres e sorrisos fantasmas a esperar um lance. 

Desoladoramente vazia. 





quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Praia espacial (editar)

Depois de percorrer caminhos e distâncias estelares, ela finalmente pousa em um pequeno planeta.

Após horas intermináveis de verificação de tudo que envolve sobrevivência, pisa, com cautela, no que parece uma praia.


A paisagem litorânea e abandonada, as ondas batendo nas pedras e o som incomparável do oceano, incentivam-lhe a retirar o encorpado capacete.


Seus cabelos, pesados e desacostumados a movimentos de liberdade, dançam à primeira rajada de vento.


A astronauta inspira, enche os pulmões, prepara-se. 

No peito, o primeiro ar respirável que encontrou em suas andanças pelo espaço. Permite que ele more em seu corpo, como um reforço, um suplemento, um elixir, um amparo.

Em seguida, liberta.

As ausências, as saudades, os sonhos que deixou pra trás. 

Liberta a culpa, os desalentos, os arrependimentos, o pesar. Os caminhos que não seguiu, a vida que não permitiu, os momentos que não teve. E aqueles que nunca terá. 


E a cada entrada e saída do ar no corpo, em cada movimento de respiração e inspiração, naquele ciclo natural e fisiológico, nas idas e vindas, na permissão e negação, na chegada e na partida, nos caminhos e nos desvios, ela revive sua trajetória, assimila suas escolhas, reverencia com respeito as direções que a trouxera ali, olha ao seu redor e no meio do caminho entre um pequeno sorriso e uma diminuta lágrima, compreende. 


A astronauta enxuga os olhos e caminha até o oceano. 

Retira no que parece um bolso em seu cinzento traje um objeto longilíneo que deposita no mar.

Enquanto espera, fotografa na mente a paisagem e o movimento das ondas daquela pequena praia do espaço. Com um bipe, o objeto retorna. Há uma mensagem piscando na tela:


“Potencialmente mergulhável. Pode entrar”. 

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

A saia inusável (editar)

Roupas são apenas roupas, ou não o são, depende.

Algumas, de fato, servem apenas como vestimenta, invólucro, indumentária social. 

Outras, determinam classe, posições, estilos, atitudes, temporalidade. 

Mas esse texto não é sobre roupas em específico, apesar das aparências.

É sobre saudade. 

Da saudade que reside numa saia que nunca foi usada. Dobrada, cuidadosamente, junto com outras saias que tiro e coloco no corpo sem pensar, essa saia, branca e linda, adornada com flores azuis e rosas, que me veste perfeitamente e que sempre coube em mim, guarda tanta coisa nela que me trouxe até esse texto. 

Sobre uma saia inusável. 

Poderia aqui descrever algumas emoções que sinto ao tocar nela, ao simplesmente vê-la quando abro a porta do guarda-roupa, poderia exprimir - tentar exprimir - metade dos sentimentos, mas há algo que eu não alcançarei nunca nessa explicação se não começar pela história de como foi parar nas minhas mãos.

Era uma noite de natal de uma família grande e unida. Juntos, todos trocavam os presentes de amigo secreto. Eu recebi o meu - a saia - das mãos do meu primo. No último natal em que passamos juntos porque em fevereiro do ano seguinte ele partia prematuramente desse mundo com 18 anos. 

É possível entender como um objeto representa dor, amor e saudade ao mesmo tempo depois do que foi contado? É possível entender o fato de ser precioso e único e eternamente adorado por mim, no entanto inusável? 

É possível que coisas materiais, apesar de serem apenas conglomerados de partículas sem vida, revivam pessoas, sorrisos, histórias vividas e histórias dolorosamente interrompidas na linha do tempo a um simples relance do olhar?

Eu conto os sorrisos e momentos que compartilhei com meu primo ao visualizar a saia. 

E lamento os sorrisos e momentos que não compartilhamos ao vê-la também.

Roupas não são apenas roupas.

Vestimentas, invólucros, indumentárias sociais. 

Não nesse texto. 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Reinvidicação (editar pro shot)


“Se você me quer, me faça sentir isso”.

Não me entregue lacunas, entrelinhas ou necessidades de interpretações. 

Não me faça duvidar, não me faça nem por um minuto duvidar porque no instante seguinte já não estarei aqui.


Se você me quer, não deixa no abraço, no olhar, no sorriso. Me queira com o corpo, mas com todo o corpo. Completo.

Coração, alma e mente,

não pela metade,

nunca pela metade,

aliás, nunca seja metade para ninguém.


Se você me quer, vem pra perto, se aproxima.

Extermina, deteriora, destrói esse espaço em que ainda somos dois.

E vem comigo, mas não para mim, vem por você. Pelo que é indubitável em você.

Insubordinável em você. Certo, inteiro.


Se você me quer, me faça sentir isso! Sim, me faça desejar que cada história que deixamos espalhadas, sejam recolhidas e vividas. Intensamente. Que não nasçam, morram, morem no espaço em que não somos, não permitimos, não deixamos. Que nem nasçam! 
Que nem sequer consigam nascer.


Ah, se voce me quer, me faça simplesmente sentir isso. Sem arestas. Sem pretextos.

Não me deixa sair sem saber.

Não me deixa partir sem saber.




domingo, 9 de julho de 2023

Quando a maré tá alta em Recife, há um perigo escondido em cada esquina iniciado com a primeira gota que cai do céu.

Um perigo que raramente atinge altas torres, bairros privilegiados, pessoas de sorte (?) que podem enclausurar-se e esperar que o tempo melhore, os que, do alto, consultam previsão do tempo para fazer programação. 

...

sexta-feira, 16 de junho de 2023

 Talvez não funcione nessas páginas.

Talvez eu não consiga dimensionar a agonia da semana que passou.

Do trabalho suado, corrido, apressado, preso nas entraves do judiciário.

Talvez eu não consiga exprimir em letrinhas a angústia. O caminho beirando a inutilidade do objeto que protelo, protelo e protelo, mas bate e volta numa parede impenetrável.

Na robotização de servidores, na lista infindável de coisas a serem atendidas e resolvidas antes que uma decisão envolvendo vida e morte seja tomada. 

Antes que o suspiro final de quem espera por ela diga que a luta foi em vão.

Era só uma curatela provisória, um respiro para pagar as contas de quem encontra-se inutilizado para fazê-lo. Um alento para que, em paz, os filhos da doente terminal pudessem chorar as lágrimas sem outras preocupações. Eu não recebi nada por isso, o meu pagamento seria dizer que estava tudo certo, ajudar de alguma forma num dor já  tão latente, tão pungente. 

Como, justiça, não tratar como urgente o que é urgente?

Uma movimento aqui, um movimento ali, horários, exigências, custas, comprovantes de pobreza, IR de três anos seguidos, consultas, consultas, consultas, pilhas intermináveis que crescem e adiam e alimentam a sensação de injustiça.

Como advogada eu choro. Como amiga também. Como quem teve tantas vezes dizer que ainda não conseguiu.

É difícil aposentar uma cliente e vê-la partir sem sossego. É difícil demais a sensação de algumas vezes não conseguir atingir.

Expectativas, sentenças favoráveis, decisões urgentes. O tipo de "não" sempre difícil compartilhar.

Nunca me acostumo.

sábado, 10 de junho de 2023

Amanheci lendo Ascenso (editar)

Quando a tempestade passa, ainda estou bambeada, ainda estou enjoada, ainda estou profundamente abalada, não pelos raios, mas pela minha indiferença ao quase ser tocada por eles.

As roupas, rasgadas, os farrapos que mal cobrem o corpo, aconpanham-me em um pequeno barco direcionado ao Marco Zero.

Eu respiro o ar conhecido, é noite, há fantasmas no ar, há contos de assombrações que me contaram poetas da noite.

Eu mesma, uma aparição vindo sabe-se-lá de onde, sou uma paisagem assombrada, branca como a lua, refletindo as últimas luzes quase apagadas da cidade. 

Há uma alvorada atrás de mim, eu sinto mais do que vejo. Ela empurra o barco e qualquer outro meio que me conduz. Meu próprio corpo, meus pés, dos iniciais aos últimos passos, acalorando a pele de arrepios constantes e não permitindo que o frio permaneça aqui. 

Os primeiros raios do dia, esses sim, alumiam minha visão, avermelhando, alaranjando, amarelando as construções queridas da cidade, os espaços que me abraçam mesmo quando não estou por perto, as saudades impregnadas nas paredes do tempo que passa, tão rápido, tão cortante, tão mordaz. Velozmente acelerando a vida e deixando coisas e coisas e coisas que não atingi a serem feitas, mas construindo coisas e coisas e coisas que nunca imaginei-me capaz de fazer. 


sexta-feira, 19 de maio de 2023

"Tis the wind and nothing more!"


A senhora Lenore abriu apenas uma fresta da cortina da janela porque era feriado.
A casa estava vazia, dispensara todos os funcionários e, obviamente, não recebia visitas desde... bem, melhor pular essa parte.

O luz do sol entrou discretamente pela ampla sala de piso de madeira e até fez surgirem uns estalidos pela casa. Soava quase como um "viva", engasgado e ansiado pelo espaço.
A senhora Lenore sorriu do rumo dos próprios pensamentos e começou a pensar se com 49 anos já surgiriam os primeiros sinais de senilidade. Quase olhou pro lado e falou alto a piada, mas percebeu que... bem, não ouviria sua risada.

A senhora Lenore sentiu uma dor profunda, do tipo indescritível e inexplicável. Tremeu sem frio; não chorou. Fechou, com dignidade,  o xale fino e roxo, estrategicamente depositado no ombro diante dos constantes calafrios que continuamente dominavam-lhe o corpo e dirigiu-se até a janela.

E o sol brilhava em quase tudo, mas nem ousava aproximar-se dela.
No campo verde, nas flores do jardim, nas colinas mais adiante, em cada canto e espaço habilmente espalhados naquele lugar.
Se sentisse beleza, poderia achar lindo.
Se sentisse.

-Lenore?

domingo, 7 de maio de 2023

(Astrologia é coincidência, então coincidentemente na minha cabeceira estão depositados alguns escritores: Saramago, Neil Gaiman , Alan Moore, Camus. Todos com o sol em escorpião.

É aleatório, no entanto, que eu costuma beber dessas leituras e extrair delas coisas que me apetecem e alimentam. 

É claro que é aleatório que me digam os amigos astrólogos que no zodíaco, escorpião é meu signo oposto complementar, como também meu ascendente, marte, saturno e plutão.

É aleatório sim, mesmo no ponto que envolve a leitura. Tenho preferência em ler o que envolve o âmago, as profundezas, os sentimentos em forma de texto captados em momentos de explosão ou reflexão. Quando sai tudo sem filtro. Adoro ler quem escreve, vive, gosta, ama, relaciona-se sem filtro. Não precisa dizer respeito a mapas e signos. Afinal, quanto a isso é aleatório).


sábado, 15 de abril de 2023

Tinha no seu corpo marcas de pequenos acidentes com a própria saúde. Imperceptíveis aos olhos, mas não ao coração.

No coração, ela sabia o que aquelas marcas representavam. Mas dessa vez, nesse texto, o foco não será a dor, mas a cura. É preciso lembrá-la sempre que venceu. 

Há uma insistência recorrente de olhar pro que passou com pena e pesar. O que talvez seja inerente à sua própria natureza. Mas vamos lá, vamos ao sucesso. Vamos ao momento em que superou. Vamos às novas oportunidades, aos recomeços, às chances que teve, que tem. 

Vamos recordá-la que ter passado por algunas intempéries e sobrevivido, não faz dela uma penitente. “Tá mais pra coisa de vencedor”. E que ela não é fragil, já se provou que não quebra. E o que mais? 

 - É que é difícil se ver forte e com sorte, às vezes. 

- Entendo perfeitamente, mas é necessário. Aprende. 

sexta-feira, 17 de março de 2023

Indomável

"Escrever é que é o verdadeiro prazer; ser lido é um prazer superficial".

Das palavras de Virginia Woolf, compreendeu o porquê de continuar adiando o momento de apertar a tecla de "enviar" o livro para o editor. 

Há algo de vital e precioso que pretende preservar no que entende por escrita. Há algo que, falando se si, funciona apenas no processo de produção que começa da primeira letra ao último ponto. Algo que a reprodução nunca vai conseguir transmitir exatamente. Algo tão extremamente conectado à ela que não funcionaria para ninguém mais.  

Ela sentir-se-ia presa se, por um momento, passasse a ser interpretada. Não fazia sentido. Ninguém, de fato,  realmente entenderia  as emoções que, intimamente, foram tocadas quando passou a exprimi-las em um texto. Nunca escreveu qualquer coisa que fosse pra comunicar ou transmitir. Deixava isso pras cartas. Pros grandes comunicadores. Para todos os maravilhosos escritores que dominam a arte de escrever para fora. Para quem deve e precisa ser lido. Para você, escritor/a, que escreve e consegue tocar os outros com as palavras. Pros grandes e eternos textos cheio de significados. Para Virginia Woolf, que também precisava vitalmente das palavras, mas tinha o domínio absoluto de transmitir profundidade com elas. Para aqueles que marcam e merecem serem citados, ecoados, replicados, lembrados, comentados, debatidos, respondidos.  

Ela não tinha esse domínio e até preferia continuar escrevendo dessa forma, indomável. Não queria que lhe cortassem as vírgulas, por mais mal empregadas que as tivesse utilizando. Não queria alcançar. Não queria ser alcançada. 


sábado, 11 de fevereiro de 2023

Nova missão : ludicizar monstros. 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Meus textos sobre filhos são puramente sentimentais e, muito provavelmente, sem lógica.

Provavelmente, se você sabe o que é ter um filho doente, você já se pegou querendo ser médico, saber fazer ausculta, operar uma máquina de raio x e ter um laboratório enorme que te diga que tudo vai ficar bem e logo. 

Você provavelmente se deparou com os questionamentos sobre o uso de antibióticos, já se pegou querendo ver seu filho todinho por dentro, já quis ser ser a própria medicina, a penicilina, o remédio certo, um Deus.

Ou não.

Talvez seja mesmo coisa minha. A impotência de entregar a saúde do meu bem mais precioso nas mãos de outras pessoas, quando sinto que o conheço mais do que ninguém, é, para mim, assustadora, angustiante e, às vezes, dolorosa.

O fato é que, provavelmente, você moveria qualquer peça do mundo pelo seu filho. Mais uma vez, estou sendo pessoal, já que eu, certamente, moveria pela minha. Qualquer coisa necessária pra afastar o que não faz bem pra ela. Essa, de fato, é a minha vontade. Embora saiba - o mundo demonstra - que tem coisas que não estão ao meu alcance e que - mesmo querendo - não vou protegê-la de tudo. E assim é o mundo. Não vou protegê-la de tudo. Não está ao meu alcance. Não está nas minhas mãos. 

E é onde mora o problema. Aprender a lidar com isso. Com a impotência. Não poder fazer nada, quando tudo que você quer fazer é tudo.

Reconheço, de fato, que pouca coisa está nas minhas mãos. Começa com nutrir e cuidar. Com o que posso. É uma verdade dura, mais até o nutrir e o cuidar, um dia, não estarão ao meu alcance. E eu sei que mesmo sendo natural como ter mãos, terei que aprender a lidar com isso. Os nossos filhos não são nossos. Ninguém possui ninguém. Desde que a minha nasceu, contabilizo os custos do intercâmbio. Sei que separar de mim um dia vai ser essencial para ela ser ela.

E eu? 

Bem, só posso dizer o que sinto por enquanto. 

Filhos são tesouros. Pequenos pedaços refletores das coisas que você considera mais bonitas no mundo, no universo, no que tem dentro e fora, real ou fantasia, qualquer tempo, qualquer espaço. São também, por vezes, noites e noites em claro de angústia e de alguns sentimentos que talvez você entenda, talvez nem precise explicar, talvez nem tenha explicação. Filhos são a tapa na cara do egoísmo, o amor mais profundo pelo outro, a lição mais absoluta do que precisamos evoluir na gente e não apenas por a gente. Pelo outro também. É receber o que te desequilibra como ser, da mesma forma que te equilibra a ser. Claro que existem outros caminhos, mas  estou falando de mim, esse texto é meu e em mim é sempre essa vontade de estar inteira, mesmo quando nem sequer me sinto "meia". 

Às vezes tudo o que resta é esperar e confiar e você sabe disso e que no fundo tudo vai ficar bem. Mas aí você se adianta, é instintivo, é irracional: faz esse pacto com as forças do mundo pra acelerar um pouquinho o tempo pro tempo em que eles estejam e fiquem completamente bem. Então senta, espera, torce com âmago e aproveita pra pedir proteção e respira. 

Pelo menos suponho que sim.

Sigo aprendendo.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A quem importa saber que peças de ouro não são magnéticas?

Recentemente, fui presenteada com uma jóia e nunca questionei a autenticidade dela. Para mim, a forma como foi parar nos meus dedos (é um anel solitário) e a simbologia quando olho pra ela vale muito mais do que me digam que vale. 

No entanto, em uma roda, recentemente, vi inúmeros olhares de admiração pro objeto. 

Eu o uso, habitualmente, como uma lembrança de quem recebi. Venho carregando comigo, junto com a aliança e mais dois anéis valiosos que nem penso em saber o preço. O valor deles está diretamente ligado ao fato de terem sido presentes de pessoas que amo, não a cifras e tabelas. Nunca me perguntei se eram jóias porque nunca achei que não eram.  Uso quatro jóias no dedo, mesmo que nenhuma delas seja jóia. 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O taurino

Entre tantos estigmas, os taurinos carregam com eles o status de serem lentos e inflexíveis.

Só que ninguém entende que o que faz o taurino demorar a tomar uma decisão é a lealdade que deverão a ela. Sim, abraçarão com tudo o que lhe pertence o que a envolve. Fácil ou difícil? Não importa. O taurino não analisa isso. Não tem medo, pudor ou vergonha de enfrentar o difícil. Encara o todo. O todo. O taurino vai. É quando caminha. Quando tem certeza.  

Há nos taurinos essa coisa de serem terrenos e extremamente sensoriais. Paladar, olfato, tato, visão, audição, tudo ligado ao momento. Ao que existe. Ao tangível. O taurino está. É presente. O taurino abraça o presente. Ele enxerga as coisas que estão acontecendo com um pouquinho de intensidade, sabe? É quase bobo. Um pássaro no jardim, uma folha diferente, a joaninha que pousou na sua mão, o suor escorrendo nas costas de um dia gostoso de Sol na praia, cada gole da bebida, esse timbre que o cantor ousou, a melodia que dá son(h)o, o toque de carinho, o aperto de paixão, os bons abraços. O abraço é corpo todo com corpo todo. É acolher um corpo. Pra um taurino é especial. Seus abraços, os que gosta de dá, são verdadeiros. Ele realmente está ali abraçando e sendo abraçado. Não é aperto, quem o conhece sabe que não. É apenas... de verdade.

Dificilmente um taurino olha pro passado. Na mente dele, tão presente, tão leal com o momento, tão comprometida com o que vive, não faz muito sentido. O taurino, no entanto, reconhece que é formado da matéria de tudo o que já viveu. Do que viu, comeu, bebeu, engoliu, cheirou, tocou, sentiu. O taurino é formado pelas partículas de moléculas de onde verdadeiramente pisou coexistindo com as partículas de moléculas onde verdadeiramente pisa. E o taurino pisa de verdade. E está. E ele até publica alguns textos. Nos intervalos do agora. 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

O livro de poesia

"Um arco-íris numa noite escura". As palavras eram de Saramago, em um livrinho pequeno, de poesia, pouco popular, depositadas quase no final. 

Me entregou como um presente, junto com a frase "lembrei de você. lembrar de mim é lembrar de você”. 

Eu não me sentia nada, mas aparentemente, as cores que percebia em mim, refletiam um colorido que fui aprendendo a enxergar com o tempo, embora vez ou outra bambeasse em contrastes. 

Pragmático, ele não gostava tanto e não era um entendedor profundo de poesia. Me contou que sempre teve dificuldade em compreender aquele soneto famoso de Camões sobre o amor, enquanto eu o sabia milimetricamente decorado. O importante nunca se tratou do significado do livro de Saramago ou do que dizia Camões, mas o gesto. Havia me enxergado em um livro de poesia, descoberto minhas cores e, continuamente, me chamava atenção pra elas.

Era como se dissesse que eu era linda de várias formas e, mais do que isso, me fizesse sentir assim.


"...e toda a gente saiu das cidades para ver as sete cores sobre o fundo negríssimo do céu". (O ano de 1993, José Saramago).


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

O nome da minha filha é Eva e recentemente, quase agora, ela criou uma amiga imaginária. 

Supersticiosa que sou, começo a fazer algumas perguntas, atrapalhando a brincadeira entre as duas que parece bem divertida. O nome da invisível é Tina, ela tem uma altura que vai do chão até o teto e o corpo todo vermelho porque "algumas pessoas podem ter o corpo todo vermelho", segundo Eva. Pergunto se a amiguinha é criança ou adulta e me surpreendo quando ela me responde que é "grande" e começo a filosofar sobre o significado da palavra.

Pessoas pequenas podem ser grandes e o contrário também vale. Vai além da altura ou faixa etária. Então, Tina, a grande invisível, que nesse momento está conversando com minha filha, me parece maior, eis que surgiu tão de repente na minha casa que não tive tempo de me preparar para recebê-la.

Na minha mente, ela cresce assim: será alguma falta minha? Será que não estou dando atenção suficiente? Será que estou trabalhando muito? Será que ela sente falta de um irmão? Será que deveria ter levado ela pro parque? Será que ela tem assistido muita televisão? Será...

Embora minha filha esteja sorrindo e se divertindo com o universo que criou, como mãe, passo a me questionar como sempre. Há nas mães esse dever de enxergar até por detrás do sorriso, uma preocupação intensa que ele seja intenso e verdadeiro e uma responsabilidade constante de preencher qualquer ausência ou falta do filho. 

Ah, Tina, eu queria ser a melhor amiga da minha filha, mas sei que não. Sempre vai existir um espaço em que os instintos inerentes à maternidade, me impedirão o estado de relaxamento necessário e adequado em que se conquista um melhor amigo. E que os da minha filha, visíveis e invisíveis, sejam os melhores. Há nas mães, também, esse costume constante de torcer.

sábado, 7 de janeiro de 2023

In vino veritas

A impaciência funciona com a paixão na mesma medida que não funciona com o amor.

Sim, a paixão remete ao corpo, à matéria, é portanto, natural entender e imaginar o perecimento, o inevitável falecimento e assim, urgente, querer viver tudo o que lhe for possível com bastante impaciência.

O amor, por outro lado, é um sobrevivente teimoso. Um representante ferrenho da incorporeidade, existente a despeito dos despeitos, viajante do tempo que é, apresenta-se independente de como, quando, onde e forma. Nem pergunta. Permanece. Subsiste. Encara. Acompanha. Perdura

É preciso paciência para amar. Paciência com a permanência.