quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Entropia I

Em um futuro distópico, me pego contabilizando as mortes que ainda consigo contar.

Da família que nascera sobrara eu, Sebastian, e um parente distante que jamais conheci, mas que ontem - não sei como - sinalizou que ainda estava vivo.

Da família que não pude constituí havia ela, Mia. Fatalmente perdida, mas nunca, nenhum dia esquecida.

A última vez entre a gente havia sete homens armados, sete metralhadoras e um segredo que ela não teve tempo de contar. 

Muitas vezes eu paro e penso que continuar aqui é uma espécie de suicídio vagaroso e que quando corro pelas ruas de cidade destruídas me fazendo de alvo e me frustro cada vez que consigo escapar, ela pode estar por aí, viva, escapando por um triz das mesmas balas que também passou a procurar.

A carta de ontem foi inesperada, apareceu quando já havia preparado a dose de ácido líquido e estava enfeitiçado com as cores que apareciam no copo, enxergando nelas as minhas próprias coleções de dores. 

Um toque, dois, pula o três e vai pro quatro, é quando eu sei que posso abrir a porta, mesmo desacostumado a receber alguém.

O homem era magro, muito magro e tinha uma pele tão branca que me pareceu azul porque em cada lugar do corpo, as veias saltavam escandalosamente. Ele sorriu, poucos dentes, não falou nada, mas abriu a mão e me entregou um relógio. Da mesma forma que chegou, virou as costas e partiu. Me pareceu ser um daqueles que tomaram apenas a primeira dose da vacina contra o vírus que desolou tudo. Só lhe faltava voz e algum juízo. Os não vacinados estavam ainda piores. Eram míseras sombras sem vida. Calados pra sempre, sem voz, sem mente, presos em ideais e tempos autodestrutivos. 

Quando abri o relógio, desacostumado a saber as horas, o ponteiro maior marcava 10 e o menor também. O sinal da minha casa. Estranhamente senti um frio na espinha e um arrepio ao mesmo tempo familiar e inusitado por todo corpo. Era esperança. Pelo visto não havia esquecido.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Melhor do que parar, respirar, deixar o corpo descansar, é essa correria que não cansa.
É esse dia que passa rápido, urgente, terminando antes de começar.
Sufocando intençoes, destruindo os espaços para dúvidas, começando e acabando, acabando e começando....

Melhor do que tudo que se desenhou de lá pra cá, é esse torpe presente.
Desorganizado, inconsequente, bagunçado, cansado, cantado, tocado...
sobretudo diferente e apressado,
certamente amante, vira e mexe amado
meu, teu nosso,
presente, vivente, urgente.



sábado, 25 de dezembro de 2021

Malbec, jazz e Getz

O vinho era tipo Malbec, o último na minha lista de vinhos. Eu sempre tenho boa vontade, sempre acredito que a próxima experiência vai ser boa, sempre fico ali, teimosamente, taça a taça, procurando encontrar nele o que acho que falta, sempre acredito que o melhor de toda a vivência está em notar as nuances dela. Assim, enquanto trazia a taça próxima aos lábios, ouvia a música (um jazz) e procurava, calmamente, no cheiro daquele vinho o aroma de todas as coisas que eu gostaria de provar. De olhos fechados, nota a nota daquele jazz começando a me aquecer, sentada confortavelmente em meu azul escuro sofá, me permiti um suspense antes de viver uma aventura e passei longos minutos adiando o momento do primeiro gole, já que achei que ajudaria cumprir todo o ritual que aprendi sobre degustação e girei a taça levemente buscando outros novos aromas que me apareceram e também pareceram ainda mais especiais por serem secretos e depois a elevei só um pouquinho, procurando achar nela o púrpura exato que eu queria ver. Nesse ponto, entre satisfação e antecipação, me vi preparada pra degustar o vinho daquela taça que eu, otimista, enchera mais da metade e novamente fiz como ensinaram, deixando que a língua fosse a primeira a tocar no vinho e que depois o líquido morasse por alguns segundos em minha boca para que eu pudesse senti-lo como deveria e apreciá-lo na totalidade, permitindo à minha memória palativa indicar o que aquele vinho poderia significar pra mim e até onde me levaria. E então, enquanto os detalhes, a imaginação, as nuances, transformavam o Malbec no melhor vinho que eu poderia beber, pouca luz na sala, sombras na parede, a música, aleatória,  mudando do jazz pra bossa nova, na minha mão, segunda taça, no meu corpo, um calor provocador, Getz rolando na faixa “Vivo Sonhando”, Joao Gilberto finalizando a última estrofe: “pobre de mim que só sei te amar”, me parece que ouvi teus passos e a chave girando, ansiosa, na fechadura da porta. 

Natal II

Abri o caderno e parei.
Pela primeira vez me faltaram palavras.
Ah, sentimentos não, os sentimentos estavam ali.
Na verdade, estavam até em profusão, em demasia, explodindo e engasgando e eu querendo que eles saíssem na ponta do lápis pra dizer…
o que quero dizer?

Me confundo, há vontade, há desejos, há votos e o que mais? 
Estou tentando, estou buscando, estou rememorando mil coisas,estou fantasiando outras mil,estou me esforçando pra escrever cada uma dessas palavras, tentando acompanhar os batimentos cardíacos acelerados, paro, me perco, tento voltar, remendo, respiro, me esforço o tempo todo e…o que quero dizer? Não consigo…

Eu acho que já falei demais pra quem não dorme bem há dias e acho que estou bem demais pra quem na verdade não está bem, mas sei que queria muito que um gole de cerveja acalmasse minha mente como acalma o meu corpo, queria muito que as risadas do dia de hoje fossem mais que um alívio e que quero, de verdade, celebrar a reunião desse dia não como um ato solene, não como uma data comemorativa, não como uma ocasião. Quero celebrá-la como o sopro de vida que sustenta tudo. 

Reli um texto em que mergulho no natal como uma época mágica. Revi nas memórias que guardo na cabeça alguém que se vestiu de papai noel apenas pra me animar e terminou animando toda uma festa.Senti nos intervalos da respiração do meu pai doente (outrora, o Noel), no momento que não me permiti pensar em alegria,um golpe no peito de espiritualidade pra continuar. Rezei ali,de olhos fechados,sem saber mais nenhuma oração,desejando da minha forma um feliz natal.

Estou engasgada, é uma mistura, mil coisas, da recepção de uma criança tocando corneta e acordando toda vizinhança, o que me faz sorrir, ao momento em que não consigo entender o que o dia de hoje significa exatamente pra mim e choro um pouquinho aqui e ali, embora esteja bem calma escrevendo esse texto.
Mas vou terminar, porque eu já sei, não é muito, é bem pouco, apenas o que posso retirar de mim hoje, bem singelo, mas sincero, com vontade e de verdade, recebe aí, como um abraço, que seja feliz. Feliz natal. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Três da manhã

3 da manhã o relógio marca.
Me parece sintomático.

Os chás não funcionam, o remédio, o exercício, a meditação, o banho quente.
Me parece incurável.

Abro os olhos, a escuridão me confunde e demoro um pouco a perceber que realmente estou ali.

Então eu tento, antes de escrever, antes de visitar a varanda, antes de mais uma vez permitir que o silêncio me perturbe e me embarace, antes do encontro nada pacífico comigo mesma, antes de pensar nos problemas, ser invadida e tomada por eles, antes de acender o abajur pra ler um livro, preocupada que a claridade atrapalhe os sonhos de quem amo, 
eu tento voltar a dormir.
E eu quero os sonhos, quero apagar, quero deixar apenas o dia me lembrar de coisas que quero esquecer. 
Quero ter as noites pra mim.
Mas me parece sintomático.

(...)

3 da manhã, desisti, estou na décima terceira linha.
Começo a deixar os pensamentos ganharem espaços e ir pra aquele lugar que só conseguirei chegar depois do último ponto.
Na mente, essa música toca. 
Ela repete e repete o mesmo som que terminei ouvindo a semana inteira.
Me sinto impregnada de "3 o'clock blues" e se em algum momento um som contagia, acho que aconteceu na primeira vez que escutei essa música e mais recentemente quando ela voltou a tocar pra mim. Febre. 
Me parece sintomático.

Lembro da primeira e do efeito que a melodia causou no meu corpo e minha mente.
Lembro que achei a música perfeita pra fazer amor ou pra dançar sozinha e ser observada, embora a minha ousadia seja mais do tipo que prefere convidar pra dançar junto.
Lembro que também e ainda acho uma das mais perfeitas pra sentar no sofá, dividir dias, sonhos, planos e segredos.
Lembro que penso nela como a música dos encontros, mesmo que seja sobre os desencontros e como, algumas vezes faz todo sentido esse tipo de coisa sem lógica.
Lembro que é maravilhoso escutar ela no carro e torcer pra que os sinais fiquem vermelhos, querendo prolongar o momento.
Lembro de entrar logo nas favoritas e aparentemente ainda estar ali.
Lembro de um projeto novo que tenho me empenhado (pouco) sobre músicas que viram contos.
Penso que algumas músicas são tão deliciosamente perfeitas, que qualquer coisa perto delas é menos, é menor, é desinteressante. Imagina um texto meu. 

Mas são três da manha e eu também não consigo fechar os olhos e me sentir satisfeita.
Então começo, mesmo sabendo da inutilidade do resultado:

Quase três da manhã, 
estou em Golden Ground 
e poderia ser uma noite incrível.

...

(Pro início, me pareceu melhor do que esperava e começo a achar que talvez, depois do último ponto, as pálpebras cansem, o sono venha e eu consiga, enfim, dormir. 

Quanto a música, acho que vai voltar a tocar aqui por um tempo. No carro, na mente, nos momentos de dividir segredos, de dançar e de fazer amor.
Me parece incurável).

 


quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Flores secas

O sol do sertão queimava-lhe as costas. 

Olhou pro céu, olhou pro chão.

O buraco ainda quase raso, quase rente ao solo do terraço.

Insistiu, mais uma vez, arrancando outro pedaço de areia trasmutado em pedra.

O suor escorria pelo corpo regando o solo que mal conhecia água e escorria pela face ocupando até mais do que o espaço onde poderiam estar as lágrimas.

Os poucos amigos e curiosos começavam a partir.

Abandonando-o à sua empreitada e, principalmente, à sua dor.

Enquanto insitia - teimando com a física, força, natureza - seu parente, deitado na cama, escassamente iluminado pela luz fraca e lúgubre do candeeiro, 

repousava o último sono, pronto pra descansar pra sempre no solo duro do sertão.

Quem sabe assim nascem flores? 

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Não quero editar e nem sei intitular

Eu passei boa parte da minha vida tendo raiva.

Era mais fácil do que encarar meus sentimentos de amor,

cabia perfeitamente

tava ali, um impulso pra virar a página

pra conseguir ir em frente

eu passei boa patte da minha vida sem esquecer o teu olhar de decepção 

de ferido

sem esquecer que no momento em que eu mais queria estar ctg

a raiva e a necessidade me fez estar contra tu

e eu nem me lembro bem as palavras

mas eu lembro que de uma forma, bem passiva

vc se defendeu de mim

e eu nem tinha 18 anos


eu so queria te dizer que em todos os momentos em que eu estive do outro lado

eu queria estar do teu

queria que tudo fosse mais fácil e simples

e

possível 

Eu tentei agora, recentemente 

espero que vc tenha entendido

espero que vc tenha recebido

espero que vc, mesmo que vá pro outro lado amanha

saiba que eu sempre te amei

nunca deixei de te amar

pai

minhas palavras nem importam

mas

me perdoa?

vc aih, desligado, na morfina

mergulhado em sonhos psicodelicos

entre a vida

entre a morte

lutando ainda

recebe esse grito que te lanço

calada?

meu amor, pai

promete que recebe,

por favor

eu so quero que vc saiba que eu nunca tive raiva

nao de verdade

era so a forma que encontrei

pra seguir

sem vc estar perto

pra lidar

com o fato de vc nao estar perto

pra achar

que nao importava tanto

quando sempre importou

quando nunca deixou de importar

eu nunca deixei de sentir tua falta

tua presença eh aquela coisa que me da paz, sabe?

por poucos momentos, poucos instantes

eu nao fico tensa

mesmo nos piores

mesmo te vendo nessa cama que eu nao queria

mesmo que seja rapido

mesmo que seja apenas vc me trazendo revistas, jerimum e sonhos pro futuro

que nunca se realizariam

mas que eu recebia como se acreditasse de verdade

pq nos fazia felizes

naqueles 15 minutos


eu te pedi pra lutar

da ultima vez que te vi

e acreditei que adiantaria

hj te peço

por pior que me doa

pra lutar

mas pelo seu bem

e se for pra fechar os olhos pra sempre

se for pro seu bem

pai

eu te amo

nao qhero me despedir

nao agora

nunca quis

nunca vou estar suficientemente preparada

mas

eu vou entender

eu te quero feliz

e bem

se tua vontade for ficar

vc vai mover as montanhas mais uma vez

e vai conseguir

mas se tua vontade for partir

nao estamos preparados

mas, te prometo

que tentaremos entender…


nunca esquece

aqui, ali

no outro mundo

tua filha mais nova

veio

com um propósito que ainda vai descobrir 

mas

veio

e vai seguir

te amando

pra sempre

ela tem as tuas marcas

em quase tudo dela

e agora

no coração 

so sinto

o que nao sei falar

nem escrever

coloco nas lágrimas

na falta de ponto final nesse texto

na falta de ponto fibal que acredito nao existir de verdade

na esperança que nos acertemos outro dia

em outra vida

ou hj

agora

se vc estiver de alguma forma me ouvindo…


so quero conversar ctg de novo

por mais 15 minutos

quero as revistas

o jerimum

quero todos os sonhos bobos

ah

vou ter que esperar, ne?

so saiba que foram muito importantes pra mim

vc

eh

muito

importante

pra mim

tanto que nao sei me despedir

nao consigo


quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Quando vi, era Bukowski

Respirei, nem tive muito tempo de respirar de novo, corri e encontrei, na rua, enquanto dava a última volta ansiosa na chave da porta de casa, o carteiro que passava e se dirigia a mim. Notei, não sei como, o pequeno rangido na bicicleta que ele dirigia e que certamente se perderia dali a uns 15 minutos diante do barulho catastrófico da cidade acordando, o que provavelmente também aconteceria com o sorriso que me lançava e que devolvi (resistente na ida, resignado na volta e provavelmente destruído no fim).

Respondi seu “bom dia”, desejando que realmente assim o fosse e retirei da bolsa o misto-quente de pão dormido que não tive tempo de esquentar e nem saborear, porque devorei antes de sentir o gosto na boca.


Enquanto andava, passos largos, grandes, algumas primeiras janelas acendiam, porque ainda não era claro o suficiente pra ser manhã e nem escuro suficiente pra ser de noite e só a eletricidade resolvia aquele tipo de problema, compreendendo, atendendo e entendendo quase todas as faltas da cidade. As que eu não entendia, compreendia, mas atendia.

Garçom,

Ela levantou com a leveza que eu não sentia.

Enquanto saía da mesa por alguns instantes, deixei a vista caminhar sobre a paisagem e os pensamentos se perderem por territórios que nunca gostei de visitar.


Sem permissão, notei meus pés tomando o rumo e a direção da saída e rapidamente fiz com que voltassem ao lugar em que fiquei esperando por ela e torcendo pra que ninguém ao redor tivesse percebido a minha intenção de deixá-la sozinha. 


Corrigi a postura, acalmei os pés, pedi pro coração perdão, pra cabeça vontade e pra mim mesmo coragem, mas me peguei vagueando outra vez, sem rumo, sem compreender pra onde iria e sem saber dessa vez como voltar.

 

As saídas ao redor pareciam diferentes. Eram simples saídas, não envolviam dor, tua cabeça baixa e teus olhos cobertos de lágrimas. Desesperadamente, tentei mais uma vez voltar, procurei teu caminho, quis te encontrar em cada passo, cada acerto, cada lapso, cada vez que me vi consciente de mim e que deparei com outras pessoas e coisas parecidas com o amor, sabendo que jamais encontraria de novo a leveza que me deixou por pequenos instantes sentado na mesa. E que eu não soube esperar.


Um portal

Comecei antes de ontem a espalhar as luzes pelo quintal.

Coloridas.

O tempo era sóbrio, a ocasião também, mas é que simplesmente não consegui evitar a esperança que me fez querer manter as cores no dia.

Tive o cuidado de cobrir cada parte e escolher o melhor lugar para formar um arco, um portal, uma passagem.

Um convite.