domingo, 28 de maio de 2023

Esperável

Era de esperar que a tristeza fizesse morada já que alugou o seu corpo e mente por tantas estações que ao findar tomou-lhe de surpresa. 

Era de esperar que continuasse a expurgar desalentos através de histórias e que terapeuticamente desembaraçasse sentimentos em parágrafos de textos.

Era de esperar que desse voz à sua voz através dos altos e baixos de seus personagens e que continuassem perpetuando em linhas o que quer que lhe despertasse vontade de eternizar.

Era de esperar que calasse por alguns longos períodos em que  a confusão não poderia, deveria ou conseguiria ser transpassada ou que não existisse sequer um ponto para dizer. 

Era de esperar que calada também transmitisse, nas elipses, nos entremeios dos textos, nas reticências, no chamado mudo para que continuassem-lhe a história.

Era de esperar que não parasse o que lhe sempre fora, era e seria essencial. Era de esperar. 

sexta-feira, 19 de maio de 2023

"Tis the wind and nothing more!"


A senhora Lenore abriu apenas uma fresta da cortina da janela porque era feriado.
A casa estava vazia, dispensara todos os funcionários e, obviamente, não recebia visitas desde... bem, melhor pular essa parte.

O luz do sol entrou discretamente pela ampla sala de piso de madeira e até fez surgirem uns estalidos pela casa. Soava quase como um "viva", engasgado e ansiado pelo espaço.
A senhora Lenore sorriu do rumo dos próprios pensamentos e começou a pensar se com 49 anos já surgiriam os primeiros sinais de senilidade. Quase olhou pro lado e falou alto a piada, mas percebeu que... bem, não ouviria sua risada.

A senhora Lenore sentiu uma dor profunda, do tipo indescritível e inexplicável. Tremeu sem frio; não chorou. Fechou, com dignidade,  o xale fino e roxo, estrategicamente depositado no ombro diante dos constantes calafrios que continuamente dominavam-lhe o corpo e dirigiu-se até a janela.

E o sol brilhava em quase tudo, mas nem ousava aproximar-se dela.
No campo verde, nas flores do jardim, nas colinas mais adiante, em cada canto e espaço habilmente espalhados naquele lugar.
Se sentisse beleza, poderia achar lindo.
Se sentisse.

-Lenore?

terça-feira, 16 de maio de 2023

Monocular

Eu explodi mas não morri. Em plena BR 232. O ano era 2020, janeiro, dia 17, dois meses antes de iniciar a fatídica pandemia. Eu explodi e não morri, mas não esqueço. O sangue quente no rosto, o vôo, o impacto com o chão, os gritos entre as dores: Marcos, Marcos! A escuridão ocupando metade do rosto, as sirenes, dor, dor Dor.

Eu explodi mas não morri e tudo o que eu queria era pegar o caminho de casa, cruzar as rotas e trajetos que me separavam do meu lar. Um calibragem, um pneu, um detalhe. E é tudo o que se precisa, né? Um detalhe bem no meio do que deveria ser só mais um dia. 

Eu explodi mas não morri, tenho bandagens em todo o corpo. Curativos, emplastros, durex, esparadrapos, o "escambau" que decidem os médicos. Coisas que parecem, esperançosamente, me curar. E curam?  Passam dias, passam noites,  não passam as dores, quando vou voltar? Quando vou voltar a enxergar? E pra casa? Quando vou voltar?

Eu explodi e não morri, mas me parece que perdi pra sempre um olho. O esquerdo. O que me permitia cruzar com segurança pelas estradas. O que me permitia ser caminhoneiro. O que me permitia trabalhar.

Mo-no-cu-lar, como escreve? Tenho que me acostumar com a palavra. É agora o que sou, o que faço. O que o INSS usou pra me manter encostado. Aposentado.

Eu explodi mas não morri, estou distante da estradas, tenho 44 anos, estou vivo, acordo todo dia e agradeço. Rezo? Sempre fui ruim em decorar orações, mas rezo com o que conheço. Obrigada por me levantar, obrigada por me deitar ao final do dia. É todo o meu repertório, mas até que serve. Acho que serve pra Deus porque serve pra mim. 

Eu explodi e não morri, mas sabe? Posso compartilhar contigo? Não é fácil. Não é nem pelo olho, o que ficou é suficiente, mas é pela limitação. Pela impossibilidade. Não poder estar inteiro, nao poder fazer o que sou bom de fazer. 

Carregar, descarregar, dá destino, devolver. Tantas coisas já viajaram comigo pela estrada, aposto que até algo teu. Quer ver? Me diz só uma coisa. Qualquer coisa. Qualquer coisa antes de 17 de janeiro de 2020. Qualquer coisa. Qualquer coisa antes do dia em que eu explodi, mas não morri. 


Mil quatrocentos e sessenta e um dias e aquele dia.

Ao chegar em casa, coração em disparada, observou que as luzes estavam quase todas apagadas e não havia ninguém na sala. A surpresa foi tanta e o espanto ainda maior que nem racionalizou quando enveredou na missão quase impossível de correr no mais profundo silêncio pelas escadas. Ao menos abandonou os sapatos de salto na porta de entrada - o que lhe pareceu depois um ponto de lucidez na história que decidiu contar agora.

Quatro anos. Quatro anos e aquele dia. Não façam as contas, faço questão de dizer: quatro anos são mil quatrocentos e sessenta e um dias. Mil quatrocentos e sessenta e um dias em que a sua vida havia mudado de uma forma completa e absoluta. Em que havia aprendido a respirar de forma entrecortada, respirar por ela depois. Quatro anos em que ouviu o primeiro choro de sua filha, em que colocou ela no peito e achou que aquele sempre seria o melhor lugar pra ela ficar e descansar - ou que pelo menos esperava que fosse. Quatro anos em que a embalou todas as noites e as madrugadas adentro e em que cada abrir e fechar dos olhos daquele ser, tão seu e tão não seu também, torceu pelos melhores sonhos. Quatro anos... e aquele dia.

Ao abrir a porta do quarto, lentamente, viu que seu marido embalava a filha nos braços, sentado ao lado de sua caminha. A cadeira de balanço rangia um pouco - pelo peso daqueles dois corpos que mal cabiam ali, cumprindo uma velha tarefa que pela primeira vez não participava. O rumo ao mundo dos sonhos da sua filha. Fechou a porta e sentou nas escadas. O aperto, familiar e conhecido, tão recorrente na maternidade, não demorou pra ocupar o espaço já conhecido no peito. Culpa por não ter estado presente, mas mais do que isso, a mistura que sabia - experimentaria ainda mais no decorrer dos anos - a certeza que sua filha, apesar de sua filha, não era parte dela. Dissociar quando você está tão mergulhada ainda na maternidade é difícil e não sabia se seria fácil um dia. Talvez querer proteger e estar por perto é inerente, é indissociável, é daquelas coisas sem explicação que você entende quando se trata de mãe. Ou não, fique a vontade. Vou trabalhar na terapia. 

Mas toda mãe precisa estar inteira e todo porto, antes de ser um porto, precisa ser estável e seguro pra que cumpra sua missão. Ela não poderia esquecer dos próprios sonhos e projetos e da pessoa que também era e queria apresentar para sua filha, além da mãe. 

Resolveu contar a história transmitida pelo marido da primeira noite em que Eva, sua filha, dormiu sem ela. "Tranquila e calma" porque tinha certeza que ela estaria ali no amanhã, quando abrisse os olhos. Que estaria ali.

Veio-lhe à mente, rapidamente, uma história que lhe foi contada por uma recém adquirida amiga que estava saindo da casa dos pais e como o processo estava sendo difícil para eles. Lembrou que ao deixar a amiga em casa, de carona, cheia de caixas pra mudança, a mãe a esperava pra carregá-las, mesmo - talvez-  discordando dela. Ela estava ali.

Lembrou também da própria história contada pelo professor do curso, sobre os recortes que a mãe guardava, emplastificados e catalogados dos textos que escreveu ao longo dos anos, e o quanto foram importantes para a criação de um projeto seu. E a torcida. 

Então esboçou esse texto com algumas lágrimas que precisavam sair e desejou, de coração, ser a mãe que, um dia, mesmo sem concordar, ajudaria com as caixas ou aquela que guardaria todos os textos. 

Quanto aos sonhos, já torcia.  

domingo, 7 de maio de 2023

"Dois e dois são cinco"


Há a impressão, algumas vezes, que tudo está certo, não importa que errado esteja.
"Como dois e dois são cinco".
Assim como coisas e situações, há pessoas que nos causam essa mesma sensação.

Pessoas com que você enfrentaria um furacão e com quem ficar de cabeça pra baixo é tão aceitável quanto de qualquer outro lado.
Pessoas certas, em lugares certos ou errados, mas significando e dando, de alguma forma, sentido para tudo. Mesmo pro que não parece ter.
E pra improbabilidades.
Nesses momentos, há algo na alma tão longe da matemática, mas tão correto em qualquer que seja o resultado, que você sorri e vive, embora esteja além da compreensão.

Agradeço aos esbarrões que trouxeram esse tipo de gente pra minha dimensão, que trazem. Aos encontros breves e aos continuados. Àqueles adimensionais, extraterrenos daquele jeito: Extra. Aos que em cada amanhecer, junto comigo, fazem com que cada respiração valha a pena. Aos meus. 

Não importa a maioria das coisas quando o que é de verdade importa, não é isso?
Não importa.


(Astrologia é coincidência, então coincidentemente na minha cabeceira estão depositados alguns escritores: Saramago, Neil Gaiman , Alan Moore, Camus. Todos com o sol em escorpião.

É aleatório, no entanto, que eu costuma beber dessas leituras e extrair delas coisas que me apetecem e alimentam. 

É claro que é aleatório que me digam os amigos astrólogos que no zodíaco, escorpião é meu signo oposto complementar, como também meu ascendente, marte, saturno e plutão.

É aleatório sim, mesmo no ponto que envolve a leitura. Tenho preferência em ler o que envolve o âmago, as profundezas, os sentimentos em forma de texto captados em momentos de explosão ou reflexão. Quando sai tudo sem filtro. Adoro ler quem escreve, vive, gosta, ama, relaciona-se sem filtro. Não precisa dizer respeito a mapas e signos. Afinal, quanto a isso é aleatório).


segunda-feira, 1 de maio de 2023

Descolorimetria

É que não precisa ser preto ou branco, basta ser cinza.

(...)

Recentemente, descobriu-se cinza.

Até diria que cinza parecia ser a cor que mais representava sua alma. Seu estado. Seu espírito.

E fazia sentido. 

Porque nem gostava de cinza. 

Coisas cinzas não são tão fáceis de gostar se você pensar bem.

Nuvens anunciando dias de chuva ou tempestades, furacões em formações, as cinzas que recolhemos do que foi queimado, fumaças poluentes, pedras comuns e inexpressivas e até elefantes - eles são um dos mais amáveis animais, mas combinemos, que não são os preferidos da maioria (não falo de mim).

Há quem tenha alma colorida, amarelo intenso, vermelho carmim, rosa ensolarado, azul pacífico, roxo deslumbrante, laranja cintilante, verde encantador. "Colorimétrica". Linda.

A sua por pouco nem tinha cor. 

Mas se tinha, era o cinza.

Passeando bem no meio, entre a claridade absoluta e a total escuridão.