terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Vinte minutos e um vídeo de mil novecentos e oitenta e oito

    

   Em um edifício, há alguns andares que estruturam a base. Colunas de constituição, gênesis. Um andar, outro andar, uma escada no caminho, uma atalho pelo elevador, saídas de incêndio, minha casa, sala, quarto, a janela, o alicerce que me permite aqui. 

      Da janela em que estou agora, olho para o céu, o limpo céu da minha cidade. Uma cidade que ainda respira. Sinto o ar, vejo a palmeira à distância, a dança das longas folhas que acompanham a valsa da brisa, os pássaros que voam mais alto, os que não ousam tanto, as pessoas que caminham como formigas perdidas no tumulto do mundo. É terça feira, um dia como o outro. Estou em pausa das obrigações, estou sozinha. Disparei o despertador para tocar em vinte e nos vinte, bem. Nos vinte, vivo o que me permitem os intervalos.

     Eu não sei para onde caminham estas linhas, embora o primeiro movimento sempre seja como as bases, as colunas: estruturantes. Droga, fui interrompida pela realidade através de uma ligação. Vinte minutos menos sete. Tenho treze agora. É assim. Horário de trabalho.

      Eu queria continuar o texto de forma poética, mas o amargo insiste. Insiste em apagar. Ah, que seja. Eis o real. A vida avisa. A vida lança os sinais, bandeiras vermelhas. Faça.

      Voltando à minha janela, onde o céu está azul, as folhas da palmeira dançam e os pássaros ousam voar, eu lanço uma canção. Estou mais para notas, do que para letras. Mais para sentir do que para ouvir ou falar. 

    Acabei de ver um vídeo de mil novecentos e oitenta e oito. Um tio meu, falecido e professor de engenharia, tinha um momento de fala durante uma aula da saudade e dizia: "aula da saudade. Nunca gostei desse nome. Falar 'saudade' é errado porque é como significasse desvinculação, como se fôssemos partir para luz e nunca mais nos ver, não é verdade?". 

     Sim, tio.  Nesses três minutos que ainda me restam, ecoo tuas palavras e ainda acredito na impropriedade que é sentenciar o destino com uma palavra. E a palavra com um destino. 

    (Não tenho mais tempo. Gastei com dois textos anteriores, entre eles um posfácio precoce).

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Absurdos


Era dois mil e sete. Eu escrevia meu trabalho de final de curso, feliz com a temática que havia conciliado minha relação ambivalente com o direito: Inimputabilidade e semi-imputabilidade penal por anormalidade psíquica - uma abordagem psico-filosófica. Carregava os poucos livros sobre transtornos mentais e atos criminosos que encontrava, Foucault, um documentário sobre o HCTP (Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico), uma visita ao local e a vontade de escrever comigo, que resultou em oitenta e cinco páginas.

Não fui uma aluna exemplar de Direito. Mas fui de todas as cadeiras de Português, Sociologia, Filosofia e Psicologia que encontrei no curso e, estranhamente, também de alguns direitos civis e processo penal. Não cruzei com a matéria que adotaria como prática, paixão e profissão. Direito da previdência e seguridade social era eletiva. Me encontrou dez anos depois. Estamos juntas até hoje.

Tirei nota máxima na monografia. De tudo que percorri na vida acadêmica, escrever sobre o tema foi o que me despertou paixão. Levei a Nau dos Loucos, de Bosch, para a apresentação. Carreguei de arte e psicologia. Pude falar de Freud. Busquei pontuar formas de o Hospital de Custódia não ser uma prisão perpétua. Acreditei, com vinte e poucos anos, na minha tese. Acreditei em cada palavra.

Hoje, enquanto enxergo o direito através de um vidro embaçado, me sinto distante — muito distante — de suas soluções. Da aplicação jurídica. Da minha capacidade de alcançar a equidade na balança. Sei, não sou uma apaixonada. Longe disso. Mas, a despeito da minha preferência por outros caminhos, ainda me impregna a ideia de justiça. Ainda luto com as armas que tenho ao meu alcance. Ainda acredito que, cega, pode enxergar.

O que me despertou esse trajeto de retorno — que não me é prazeroso, embora não traumático — foi a notícia de um menino dentro da jaula de uma leoa. Um menino que não teve chance de sair. Lembrei da minha insistência em apontar soluções, na tese, para reinserção social dos internados sob medida de segurança do “Manicômio Judiciário”. Para reintegrá-los. Mesmo sabendo que não tinham chance de sair. Uma chama que não me alcança mais, embora essas linhas me parecem feitas de suas brasas.

Então, ao escutar a história do menino e da leoa, pensando na inevitabilidade do seu trágico destino, enquanto brigo com as feridas abertas da sociedade — essa sim, fera — torço para que algum jovem com vinte anos esteja buscando soluções que um dia nos alcancem.

Talvez um desejo absurdo, embora infinitamente menor do que o absurdo do triste falecimento de Gerson.