Se ele pedia licença, eu dava. Não havia mais razão para discutirmos. O homem era duro, firme. Quando queria, queria, era assim. Nunca fui boa com essas coisas de contundência. Amoleço no primeiro olhar.
Quando eu entrava na casa, era lei: que não olhasse para o canto direito, mas apurasse os ouvidos. Mais tarde conversaríamos e eu teria que ter as notas em mente. Sol, do, lá, Mi em reto. Minhas mãos pintadas de sangue quando errava... Mal sinto o polegar direito. E ainda as tarefas da casa para terminar... Eu apurava melhor do que podia. Desejando, se possível, melhor audição que a minha. Orelhas gigantes, memória infalível. Eu odiava o porão da casa.
— Venha.
Eu o ajudava a vestir o paletó, ajustava os desamassos e o acompanhava ao teatro. Nunca assistia a peça, (Nunca olhar. Escutar), apurava os ouvidos porque teria que narrar a parte técnica. Não adiantavam os aplausos, o homem não sorria. Entrava no camarim, eu virava as costas, se escutei tudo? Sim, perdão, sim, senhor. Senhor.
No porão há uma janela e uma luneta. Herança de alguém que habitou aqui. Talvez a mulher antes de mim. Os lençóis nunca foram trocados. Há marcas iguais às minhas. Quase sempre afundo no colchão e adormeço. Outras vezes, tento alcançar algo do céu com a luneta. Talvez tenha visto uma planeta, umas estrelas, coisas que estão lá. Eu não sei distinguir os borrões na lente, já quis ter estudado, já quis bem mais. Hoje, só desejo que apareçam, não importa que nome tenham e a forma que assumam.
A musica do homem é aplaudida, aclamada. Os teatros sempre cheios, os cumprimentos na rua, na igreja. Ouço todos, cabeça sempre baixa. O homem agradece, a voz automática. Grita à noite que não entendem. Ninguém entende. Muitas vezes não dorme, derramando notas pela casa. Se é belo? Nunca soube, nunca pude parar para apreciar. Eu cubro o homem exausto deitado no chão do tapete, recolho as garrafas. Não é bonito agora. Talvez no teatro seja sim. Eu preparo um banho gelado e arrumo as vestes. Não consigo organizar o que tem dentro, mas até que administro o que há fora. O homem tem olhos verdes, recordo. Só recordo. (Nunca olhar).
Uma vez quis tocar com ele. O homem riu. Mulheres não criam músicas, criam filhos. Já estive grávida. A criança viveu pouco tempo dentro de mim. As músicas do homem seriam imortais, ouvira uma vez. Mas o filho não chegou a nascer. Se tivesse... poderia olhá-lo. Poderia olhar alguém. E amar. Talvez o homem também. Ou talvez as pequenas mãos do filho já chorassem antes mesmo que crescessem. Se ele não escutasse. Sol, do, mi. Uma criança não merecia aquilo. Tomava ervas para não engravidar outra vez. (Não se preocupe. Estão bem escondidas).
A luneta é um objeto interessante. É quase um portal. Quando não afundo no colchão manchado de sangue, viajo para os planetas através dela. Batizei alguns, por não saber os nomes. O mais distante é o Aurora. Temo não alcançá-lo, ainda que em sonho. Raramente surge e quando o faz é apenas um borrão. Quase apagado. E as estrelas, se passam, passam rápido demais.
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