terça-feira, 22 de abril de 2025

Sobre esquinas e blues


Ontem, fui assombrada pela incerteza.

Acordei às quatro da manhã, acolhi minha filha que havia despertado, tentei ler para voltar a dormir, abri o bloco de notas, as palavras não chegaram, deixei para hoje. 

Agora, que me permito esse tempo, antes de começar a rotina diária, tento expressar essa confusão antiga, embaraçada com sentimentos que ainda não sei nomear. Tentarei com este texto.

Sempre tive a impressão de que algo me esperava na próxima esquina. Fui passando e caminhando por elas, sempre lançando-as um olhar de lado, atravessando os cruzamentos com insegurança, mas atravessando-os mesmo assim.

Recebi um exame ontem com dois marcadores preocupantes para a medicina. Ainda não sei do que se trata. Ainda não é uma doença. Não, até que um médico resolva chamá-la assim. Por enquanto, é apenas um exame fora das curvas de referência. Neste instante, só me permito pensar dessa forma. E até nove horas. De nove em diante, seguirei como se não existisse, mas marcarei os médicos, claro. Não sou tão displicente assim.

A verdade é que não me senti abalada. Compartilhei com uma amiga médica, com um amigo próximo, com meu marido antes de dormir, mas sem alardes, sem exaltação.

Se tiver que lidar com algo profundo, que batalhe com meu corpo, eu lidarei, ora. Para ganhar a batalha. Para ficar bem.

Especialmente pela minha filha e pelos meus. Mais por eles do que por mim, na verdade. Pois é.

Estou no blues de fim de mês, esse período estanque, que coloquei um nome bonito, apenas para não chamar de outro, mais grave.

Durante esse tempo, meu vazio grita mais do que de costume, sou bombardeada por sentimentos que não me fazem bem, revisito momentos dolorosos de minha vida, não consigo enxergar a luz nos dias que amanhecem e nem agradecer pelas noites que estão por vir. Fico cega. Oca. Frívola. Inadequada.

Mesmo assim, continuo chamando os marcadores do exame de "circunstância".

A mesma que sempre temi encontrar na próxima esquina?

Rogo que não, enquanto atravesso o cruzamento.


domingo, 9 de julho de 2023

Quando a maré tá alta em Recife, há um perigo escondido em cada esquina iniciado com a primeira gota que cai do céu.

Um perigo que raramente atinge altas torres, bairros privilegiados, pessoas de sorte (?) que podem enclausurar-se e esperar que o tempo melhore, os que, do alto, consultam previsão do tempo para fazer programação. 

...

domingo, 6 de novembro de 2022

Chuva de primavera

Ainda chove na primavera.

Na Bahia, em Canhotinho.

Em Divinópolis, aqui.

Ainda chove na primavera.


Quando chove, guardo o óculos de sol e observo.

As cadeiras dos bares e mesas das calçadas fecham-se por um instante e aguardam.

Aguardam o tempo mudar.


Ainda chove na primavera e eu me recolho às vezes. 

Outras, deixo que os pequenos pingos ou as tempestades passageiras me molhem também.

Combina.

Combina com essa coisa meio termo.

Combina com o meio sorriso desse meio tempo que aguarda as flores que até ontem nem pareciam querer sair.


Ainda chove na primavera e aqui em casa a chuva ajuda a aguar as plantas nos dias em que esquecemos delas.

Um aviso pra não ficarmos totalmente distraídos dessas coisas que parecem apenas complementares, mas que são fundamentais.

Ainda chove na primavera e acabei de enxugar o quintal do jardim.

Pego as cadeiras de praia e distribuo onde o sol aparece tímido, mas aparece.

Ainda chove na primaveira e convido todos a sair de casa. 

Talvez exista um dia inteiro de Sol nessa primeira manhã de chuva. 

Ou mais chuva esperando pra sair.

Ainda chove na primavera e há tanto a esperar dessa inconstância do tempo.

Estações, transformações, ah! 

Ainda chove na primavera.


quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Lusco-fusco

Juana tinha dois tipos de óculos escuros. Os que usava nos dias em que não queria ser reconhecida e os que usava pra chamar atenção.

Aquele era um dia de chamar atenção e o óculos era a única coisa que faltava naquela mulher que Juana via no espelho.

Vestimentas concluídas, se dirige ao estacionamento e aciona o alarme logo no início, como que anunciando sua chegada.

E assim passa o dia, chegando nos lugares como se já esperassem por ela, passando com facilidade pelos caminhos que lhe abriam naturalmente, caminhando com segurança em salto 15, sem desvios, sem tropeços, sem atropelos.

Juana quase foi ao banheiro retocar o batom quando chegou no restaurante, mas resolveu apenas abrir o espelhinho de bolso e ali mesmo pintar nos lábios o carmim.

Reservara uma mesa na varanda pra sentar sozinha, não queria companhia, só atenção a distância, o que interessava não era atrair os outros mas atrair a si e o objetivo maior de tudo já começava a despontar na sua frente…

…o pôr do sol incrível daquele lugar. 

Juana bebericou o champagne e retirou os óculos. 

...

"A beleza não está nem na luz da manhã, nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa ambiguidade" (Lygia Fagundes Telles).


domingo, 7 de agosto de 2022

So What


Duas taças encostadas, manchadas de vermelho no fundo, abandonadas perto da pia e uma garrafa de vinho vazia.


Miles Davis retido no ambiente (“so what”), 

a rebeldia de um jazz mítico de um músico genial, ecos da noite passada.


Paredes frias de um dia frio, manhã que deveria esquentar um pouco e lentamente e suavemente cumpre esse papel: esse de desgelar o tempo.


Estico o corpo.

Coloco a xícara na mesa.

Preparo o café e amo o cheiro inconfundível que invade o ambiente (como descrever cheiro de café? Casa? Café tem cheiro de casa?). 

Preparo algo bom de gostar e aguardo passos descerem a escada.

Sim. 

Ainda sinto frio.

Está aqui, indelével, em cada um dos meus ossos.

Sim. 

Ainda é inverno.

E que seja!

Que seja inverno.

Não importa. 

É tempo de sorrir com as estações. 


domingo, 3 de abril de 2022

Gratidão à Lygia


“Me leia enquanto estou quente”.

Não deixe solitárias minhas linhas incendiárias.

Não abandone o meu texto nos momentos de combustão.

Por favor, permita-me as alterações de alguns sentidos enquanto escrevo.

Aceite o vulcão, aceite a explosão, aceite-me inflamada.

Abranda, afaga, com olhos afetuosos as frases incivilizadas.

Compreende, sim, entende-me insolente, impertinente, deselegante, pouco educada.

Mulher. 

Humana.

Ama também e benevolente cada palavra inconsequente, descontrolada. 

Permite licença ao meu ardor, à minha paixão, à vontade de existir associada à confusão da existência. 


(Ao escrever, sinto as emoções transformando-se em palavras, lanço perguntas, formulo respostas, novos questionamentos, toco minha alma em pontos delicados, me conheço, me desconheço, faço planos, desfaço, sem pretensões, mas esperançosamente, espero tocar sentimentos 

além dos meus, imagino leitores, espero que gostem, embora duvido que entendam). 


Me acompanha, me folheia, até o fim do texto, 

não precisa adorá-lo, nem compreende-lo, nem minimamente gostar do que escrevo,

mas, por favor, “me leia enquanto estou quente”.


(Humilde homenagem a Lygia Fagundes Telles)


terça-feira, 1 de março de 2022

Oceano

Peixes.

Nadando por aí, distraídos, sonhadores, mergulhando na profundeza e na profundidade sem receio.

Peixes me encantam, multicoloridos são o que são: lindos. Pequenos viajantes. Encantantes. Tenho uma predileção especial por peixes. Singelos, sinceros, correndo sempre perigo inconsequentemente, mas indo, sempre em frente. É que sonham demais, percorrem demais. Corações, mentes. Ah, que bom de ver, viver, reviver. Tão, tão, tão doce. Nesse mundo assim, parece injusto, parece deslocado, transcendental. Deixo livre, nadar livre, vai, vai. Sem volta (?). Tão bom de ver chegar, tão lindo e triste de ver partir. Difícil entender, impossível não doer. Mas vai. O mundo é pequeno, um oceano é pouco. Pode ir. Peixes.