sábado, 27 de janeiro de 2024

Um textinho simples para a minha dançarina

 Minha pequena bailarina sola enquanto cresce.

Com coragem dança a música preferida, rodopia, gira, quase vira estrelinha. 

No acompanhar de seus passos, meus olhos brilham e meu coração - cer-ta-men-te - cresce.

No universo de coisas tão difíceis de entender, me permito compreender tão somente as fáceis: amor, orgulho, cuidado, torcida.

Minha bailarina aviva, esquenta, me faz enxergar razões pra existência, pras caminhadas, pras batalhas, pras lutas diárias com o mundo e comigo mesma.

Ela é o mundo, ela é tudo, a razão que me faz atravessar os cruzamentos e qualquer encruzilhada. 

O destino, o motivo, a pulsão até a chegada.

O alicerce, o fundamento, o sustentáculo, a alma.

 A chama acesa em toda a caminhada. 

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Outro encontro na Sertanense (editar)

Eu me lembro, embora não com precisão.

Quando fecho os olhos, quase sinto os paralelepípedos antigos encostando no solado do calçado, os odores desagradáveis mas afetivamente conhecidos, vislumbro as cores de tintas desbotadas dos edifícios, a beleza consumida das ruas projetadas para nunca serem abandonadas.

Eu vejo as lojas passando à minha direita e à minha esquerda, farmácias, padarias, lanchonetes seculares, uma ponte de ferro atrás unindo um lado ao outro da cidade, os barulhos dos passos atravessando da Rua Nova à Imperatriz, aquela parede com poesia de Ariano pichada e com cheiro de mijo que poderia evitar passar perto, mas que era irresistível.

Vejo as igrejas nas ruas, as pequenas praças de fontes vazias, os pombos no alto, no céu azul ensolarado, a quantidade enorme de transeuntes, um mar gigante de pessoas e indigentes transmutando papelão em casas. 

E eu me lembro, embora não com precisão, das tantas  vezes em que caminhei, senti e vivi o centro da cidade. Do cheiro dos sebos, dos garimpos animadores, do brilho do vidro e pulseiras dos relógios enfileirados nos camelôs, dos ônibus passando com menos cuidado, menos conforto e mais passageiros do que deveriam. 

E entre rostos e buzinas de carros, também me vejo, ansiosa, em frente ao cinema São Luís, tomando todas as direções  que me levam ao teu encontro. Cabelo longo, quase cobrindo a mochila das costas, inconsequentemente de salto e de preto. Invariavelmente de preto

Da nossa família fosse a única que resolveu morar longe, saindo de Olinda para Boa Viagem. Da minha família fosse aquela que me acolheu e adotou quando minha mãe quase morreu na mesa de parto. Da minha família, sempre lembro que teus olhos eram os mais compreensivos e o teu apoio incondicional. 

E é claro que os caminhos da cidade continuam me levando  ao teu encontro, mesmo que a definitividade da morte não faça disso possível, mesmo que seja com gosto de lágrimas e um amargor de saudade que eu te vejo me esperando, em frente à lanchonete Sertanense da Rua Nova, para dividirmos um lanche, um misto, uma cartola e uma coca gelada, sentadas no balcão.  


domingo, 5 de novembro de 2023

Uma saudade chamada xadrez (editar e melhorar o final pra sábado)


Eu me lembro daquela mesa de xadrez, naquele encontro de outra hora em que, vivo, você me ensinou os primeiros movimentos.

E eu me lembro de não ter apreendido sequer uma norma que conduz o jogo, mas de ter achado fascinante e de continuar achando fascinante mesmo agora.


E eu me lembro que era noite, uma viagem, uma cidade, Cidade das Flores, em que impensadamente você nos carregou pra conhecer.


Eu lembro da longa distância de lá até nossa casa, do medo nas curvas da Serra das Russas, do play do k7 no stereo do carro, de revezarmos Xuxa e Roberto Carlos, das cruzes depositadas nas beiras das estradas. 


Eu me lembro de ter sido embalada pela música, de cada pose pras fotos, de ter comido pizza à noite, de termos dormido todos no mesmo quarto e de um parque de nome estrangeiro, de um arquiteto holandês.


Da praça cheia de flores, dos canteiros enfeitando a avenida, das arvores altas, pinheiros tocando as nuvens, da saudade na partida e de ter torcido pra voltar.


Hoje, vivendo na cidade que me encantara e revisitando o local em que quase aprendi xadrez, não encontrei a mesa no hall de recepção da entrada.

Percorri os corretores, revivendo doces momentos fantasmas, as fotos antigas nos quadros emoldurando tempos que não voltam mais. Pisos decorados, bancos vazios, parques infantis sem gritos, janelas fechadas nas casas, um salão de jogos empoeirado no final de tudo. 

E a mesa. 

Gavetas ao redor, bispos, reis, rainhas, cavalos, torres e sorrisos fantasmas a esperar um lance. 

Desoladoramente vazia. 





quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Praia espacial (editar)

Depois de percorrer caminhos e distâncias estelares, ela finalmente pousa em um pequeno planeta.

Após horas intermináveis de verificação de tudo que envolve sobrevivência, pisa, com cautela, no que parece uma praia.


A paisagem litorânea e abandonada, as ondas batendo nas pedras e o som incomparável do oceano, incentivam-lhe a retirar o encorpado capacete.


Seus cabelos, pesados e desacostumados a movimentos de liberdade, dançam à primeira rajada de vento.


A astronauta inspira, enche os pulmões, prepara-se. 

No peito, o primeiro ar respirável que encontrou em suas andanças pelo espaço. Permite que ele more em seu corpo, como um reforço, um suplemento, um elixir, um amparo.

Em seguida, liberta.

As ausências, as saudades, os sonhos que deixou pra trás. 

Liberta a culpa, os desalentos, os arrependimentos, o pesar. Os caminhos que não seguiu, a vida que não permitiu, os momentos que não teve. E aqueles que nunca terá. 


E a cada entrada e saída do ar no corpo, em cada movimento de respiração e inspiração, naquele ciclo natural e fisiológico, nas idas e vindas, na permissão e negação, na chegada e na partida, nos caminhos e nos desvios, ela revive sua trajetória, assimila suas escolhas, reverencia com respeito as direções que a trouxera ali, olha ao seu redor e no meio do caminho entre um pequeno sorriso e uma diminuta lágrima, compreende. 


A astronauta enxuga os olhos e caminha até o oceano. 

Retira no que parece um bolso em seu cinzento traje um objeto longilíneo que deposita no mar.

Enquanto espera, fotografa na mente a paisagem e o movimento das ondas daquela pequena praia do espaço. Com um bipe, o objeto retorna. Há uma mensagem piscando na tela:


“Potencialmente mergulhável. Pode entrar”. 

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

A saia inusável (editar)

Roupas são apenas roupas, ou não o são, depende.

Algumas, de fato, servem apenas como vestimenta, invólucro, indumentária social. 

Outras, determinam classe, posições, estilos, atitudes, temporalidade. 

Mas esse texto não é sobre roupas em específico, apesar das aparências.

É sobre saudade. 

Da saudade que reside numa saia que nunca foi usada. Dobrada, cuidadosamente, junto com outras saias que tiro e coloco no corpo sem pensar, essa saia, branca e linda, adornada com flores azuis e rosas, que me veste perfeitamente e que sempre coube em mim, guarda tanta coisa nela que me trouxe até esse texto. 

Sobre uma saia inusável. 

Poderia aqui descrever algumas emoções que sinto ao tocar nela, ao simplesmente vê-la quando abro a porta do guarda-roupa, poderia exprimir - tentar exprimir - metade dos sentimentos, mas há algo que eu não alcançarei nunca nessa explicação se não começar pela história de como foi parar nas minhas mãos.

Era uma noite de natal de uma família grande e unida. Juntos, todos trocavam os presentes de amigo secreto. Eu recebi o meu - a saia - das mãos do meu primo. No último natal em que passamos juntos porque em fevereiro do ano seguinte ele partia prematuramente desse mundo com 18 anos. 

É possível entender como um objeto representa dor, amor e saudade ao mesmo tempo depois do que foi contado? É possível entender o fato de ser precioso e único e eternamente adorado por mim, no entanto inusável? 

É possível que coisas materiais, apesar de serem apenas conglomerados de partículas sem vida, revivam pessoas, sorrisos, histórias vividas e histórias dolorosamente interrompidas na linha do tempo a um simples relance do olhar?

Eu conto os sorrisos e momentos que compartilhei com meu primo ao visualizar a saia. 

E lamento os sorrisos e momentos que não compartilhamos ao vê-la também.

Roupas não são apenas roupas.

Vestimentas, invólucros, indumentárias sociais. 

Não nesse texto. 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Reinvidicação (editar pro shot)


“Se você me quer, me faça sentir isso”.

Não me entregue lacunas, entrelinhas ou necessidades de interpretações. 

Não me faça duvidar, não me faça nem por um minuto duvidar porque no instante seguinte já não estarei aqui.


Se você me quer, não deixa no abraço, no olhar, no sorriso. Me queira com o corpo, mas com todo o corpo. Completo.

Coração, alma e mente,

não pela metade,

nunca pela metade,

aliás, nunca seja metade para ninguém.


Se você me quer, vem pra perto, se aproxima.

Extermina, deteriora, destrói esse espaço em que ainda somos dois.

E vem comigo, mas não para mim, vem por você. Pelo que é indubitável em você.

Insubordinável em você. Certo, inteiro.


Se você me quer, me faça sentir isso! Sim, me faça desejar que cada história que deixamos espalhadas, sejam recolhidas e vividas. Intensamente. Que não nasçam, morram, morem no espaço em que não somos, não permitimos, não deixamos. Que nem nasçam! 
Que nem sequer consigam nascer.


Ah, se voce me quer, me faça simplesmente sentir isso. Sem arestas. Sem pretextos.

Não me deixa sair sem saber.

Não me deixa partir sem saber.




domingo, 9 de julho de 2023

Quando a maré tá alta em Recife, há um perigo escondido em cada esquina iniciado com a primeira gota que cai do céu.

Um perigo que raramente atinge altas torres, bairros privilegiados, pessoas de sorte (?) que podem enclausurar-se e esperar que o tempo melhore, os que, do alto, consultam previsão do tempo para fazer programação. 

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