sábado, 29 de janeiro de 2022

Brilhe (pai)


Você não gostaria que eu escrevesse um texto te chamando de louco, por mais que eu te dissesse nele pra brilhar. Brilhe!


Você não gostaria que eu quisesse colecionar as pinturas que você pintou e queimou, mesmo que eu as achasse lindas e te dissesse pra brilhar. Brilhe! 


Você não iria gostar se eu te admirasse e visse como alguém além do tempo, que viajou na brisa, mas nos deixou no chão, mesmo que eu te falasse que estamos bem e te dissesse pra brilhar. Brilhe! 


Você não gostaria que eu enxergasse a rodinha azul nos teus olhos aparentemente negros, como buracos no céu aparentemente azul, mesmo que eu te falasse que nunca vou esquecê-los e te dissesse pra brilhar. Brilhe! 


Você não gostaria que eu falasse sobre as sombras escondidas atrás do teu sorriso e as súplicas recorrentes à lua disfarçada de sol, mesmo que eu te diga que compreendo e te dissesse pra brilhar. Brilhe! 


Você nao iria gostar de saber que tudo bem. Não é perdao, não precisa, só está tudo bem. Toca a flauta, muda o disco, coloca jazz e baião ao mesmo tempo, traz cinco sacolas e caixas cheias de amor esporadicamente, parta e volte mil anos depois. Você não iria gostar de saber que eu sentia falta, que sempre esperei você voltar e amei cada item daquelas caixas, mas sempre senti que continham apenas um pedaço do amor que eu realmente queria receber, mesmo que eu apenas me calasse e torcesse pra você brilhar. Brilhe!


Você não iria gostar se eu te dissesse que hoje sinto a ausência até dessa ausência e que dói a saudade do que fomos e também a saudade do que poderíamos ter sido, mesmo que eu te diga que o teu brilho é mais forte hoje que combina com as estrelas, mesmo que eu nem chore e te peça pra brilhar. Brilhe! 


Você não iria gostar que eu te dedicasse esse texto e te enxergasse em uma música sobre um diamante louco, mesmo que nela eu identificasse a peculiaridade singular e preciosa da tua personalidade e te enviasse em cada verso os meus pensamentos de amor, enquanto olho pro céu, pra via láctea, te enxergando em cada canto que poderia e deveria brilhar. Brilhe! 


***Inspirado em “Shine On You Crazy Diamond” - Pink Floyd

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Arco-íris inverso

Posso guardar as minhas letras carinhosas, posso guardar meu coração. 

Posso esconder as partes íntimas e preciosas. Posso deixar em branco as páginas que publiquei aqui, mesmo completas de textos. 

Posso querer o hiato, o apagão, a desmemória. Posso passar por esse dia como se fosse outro dia. 

Posso colecionar as cartas que não envio, as que reler me fazem chorar. Posso tentar matar algumas partes de mim que precisam dormir para sempre. Posso carinhosamente querer acalentá-las também. 

Posso pouco, embora muito queira. Posso muito, embora pouco queira. Posso querer de novo. 

Posso recuar por medo do escuro. Posso querer sol e chuva ao mesmo tempo. Posso me sentir tempestade e bagunçar o tempo. Posso me sentir calmaria e tudo abrandar. 

Possa amar de forma consequente e inconsequente. Posso sentir todo o calor que preciso segurando uma mãozinha. 

Posso olhar para o céu e enxergar o arco-íris. Virado ao inverso e com todas as cores trocadas e ao contrário. Posso amá-lo assim também. 

sábado, 22 de janeiro de 2022

Entropia VI

Ela estava de costas. Os cabelos não eram longos e nem voavam mais com o vento porque não havia vento e quase não haviam cabelos.

Ela estava muito magra e acho que eu conseguiria segurar seus dois punhos com apenas uma das minhas mãos, mas o corpo, embora esquálido, carregava e emanava aquela vitalidade que me fazia respirar. Senti que o ar voltava aos meus pulmões e doía um pouco porque voltava com tudo, com força, sem delicadeza, de uma vez. Minhas lágrimas caíam livremente, mas não sabia identificar de onde vinham, de qual tipo de dor emanavam, porque eu sentia tantas e ao mesmo tempo e todas elas me pediam pra chorar com desespero, mas eu quis enxugar qualquer uma antes de falar com ela, já que queria que a primeira impressão fosse de um sorriso. E ela gostava do meu. Tinha que reaprender a sorrir.

...

Só vou provar um pouco, mas achar delicioso


Estou ansiosa pela noite porque programei algumas coisas pra ela, envolvendo quase tudo o que nos diverte. 

Eu chegarei, vestido preto, sei que assim estarei atraente, uma chocker bem simples pra compensar a ausência de brinco, descalça, blush discreto, levemente ruborizada, batom cor de boca (powder kiss) e meu habitual delineador. 

Meus cabelos? Soltos ou até meio presos, eu gosto dos dois jeitos e você, que me diz que gosta de todas as formas, estará terminando algo que provavelmente vai cheirar bem na cozinha, algo que eu vou comer bem pouco porque vou preferir beber mais, apesar de achar delicioso.

A música? Não quero saber, nem imaginar, quero ser surpreendida, nem quero escolher, não quero decidir nada, só quero desligar por um momento, conversar sobre a gente ou qualquer coisa que nos interessa, pontuar tudo aquilo que adoro em você e acho lindo, quero te ouvir falando dos meus detalhes, os que ninguém nota e nem eu, mas adoro saber que você sempre prestou atenção assim pra enxergá-los.

Vou te contar que estou feliz, embora ainda processando algumas coisas, você poderá nem falar nada, mas vai me puxar pra um abraço e eu? Poderei chorar, poderei sorrir, fazer amor, dançar um pouco, cantar mal, brincar contigo, te assanhar, me assanhar, dormir, descansar, beber bastante ou um pouquinho além da conta. Poderei ser eu da melhor e da pior forma. Poderei ser eu. 



Carpe Momentum (e os passarinhos)


Há algo bem tranquilo nesse momento. Antes, afogueado por nossas vontades, mesmo às 14h30 da tarde, proibido e permitido pelo que juntos decidimos, ainda cansada, mas relaxada, coração de novo em compasso,  me pego escrevendo algumas linhas enquanto percebo a quantidade enorme de passarinhos que devem morar no telhado da casa e que cantam sem parar.

Há algo doce em mim mesma, mas ligeiramente desordenado, tempo, vida, morte, situações inesperadas, as páginas que escapam, as páginas escritas, as páginas rasgadas, ocultas, apagadas, as páginas em branco que me esperam e essa página de agora.

Há algo muito mais interessante até pra mim, no espelho, me permito os cabelos até um pouco assanhados, noto pela primeira vez a curva peculiar do meu sorriso, denunciando a minha ironia, minha forma natural de ver a vida e as coisas da vida, os pequenos e os grandes problemas e os meus olhos que conseguem se distrair com a lua e as borboletas, mesmo que passageiramente, mesmo que só no texto, mesmo que só agora, mesmo só hoje em que acordei amando dia, tarde e noite e estou esfuziante, mesmo que não dure e seja apenas um momento, há algo delicioso, gostoso, simples, leve, vivo (!) apenas em estar aqui agora.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Ascendente: escorpião

Eu não me sinto poética. 

Eu não me sinto romântica, eu não vou conseguir terminar esse texto com rimas e beleza, nem vou enfeitá-lo agradavelmente com palavras que eu sei que quase soariam como música se eu me esforçasse. 

Eu nem quero começar a me esforçar, pois eu não me sinto poética, eu me sinto extremamente impópria, deselegante, descabida, embora consiga enxergar beleza quase sempre onde nem tem e abrace com doçura as pessoas da minha vida, embora minha inocência tosca tenha me roubado a chance de escolher como seria o meu primeiro beijo e a minha primeira vez, enquanto sigo enxergando os detalhes bons por trás do que nem deveria, eu me permito ser aborrecível, inadequável, censurável, porque eu não me sinto poética e não quero música, palavras, flores, eu quero o vinho e quero o sexo, não parece comigo, mas também sou eu, eu escrevo, eu amo, eu brinco, eu me divirto, eu acolho, eu abraço, eu entendo, eu permito, eu cuido, sou doce, leve, carinhosa, agradável, sou poética.

E não sou também. 

Tremors


Eu parei um pouco, ofegante, esbaforida e encontrei um refúgio discreto e quente. 

Eu te agarrei pelos braços e te puxei comigo, meu corpo cabendo perfeitamente no abraço que você reservou pra mim, te protegendo, embora assim também me sentisse fortemente protegida.

Eu fechei os olhos e torci pra que fosse suficiente, o esconderijo era perfeito, não totalmente escuro, mas fracamente iluminado, cabiam apenas duas pessoas e a intenção de outra pessoa descendente dessas pessoas, mas era estranhamente confortável, era perfeito, discreto, seguro.

Eu mal senti quando a terra tremeu e quando fui sugada repentinamente pra baixo. Você tentou. Muito! Você ainda me segurou apesar do susto, você se esforçou e acreditou que conseguiria me manter por perto, você quis de verdade e com lágrimas que eu permanecesse ali. Você não desistiu de mim em nenhum momento e até quis cair comigo, o que eu, te amando, não permiti que acontecesse. 

E eu caía lentamente enquanto via o teu rosto lindo, triste e desesperado, me chamando, me querendo, me salvando, acreditando, sempre acreditando.

E eu achei que morreria quando terminasse, porque já me sentia um pouco assim antes disso e que meu corpo explodiria com a queda, mas estranhamente flutuei (ou seria meu espectro?) antes de chegar ao chão. 

Não havia nada que indicasse que era o fim, mas também não conseguia olhar pra cima e achar que não era, a escuridão apagando intensamente qualquer possibilidade. 

Mas você apareceu. Eu não vi teu sorriso, mas senti como se estivesse vendo, assim que aterrissou flutuante ao meu lado, achando tudo mais incrível do que trágico, como era bem da sua pessoa.

Senti teus braços, coube de novo e perfeitamente no teu abraço, fui recebida e outra vez recebi. 

Estava escuro, mas tava quente, estava estranho, mas tão real, estava parecido com o fim do mundo, mas pra gente era o começo e eu quase senti medo, mas você estava ali. 

Thoreau, Camus e Goethe


Fim de noite.

Ela caminha pela casa inteira, despindo as peças da roupa que passou o dia usando, excepcionalmente cansada.

Entra no chuveiro, deixa a água quente escorrer pelo corpo, passa longos minutos de olhos fechados, completa seu curto ritual de beleza, creme, shampoo e sabonete, enrola uma toalha no corpo, cabelos ainda pingando, paciência quase nenhuma para secá-los, vontade muito pouca de procurar outra roupa, deita no quarto.
 
Em algum momento, apagou a luz ou talvez nem a tenha acendido, mas quando despertou, ainda madrugada, foi abraçada pela escuridão. 

Com frio por ter dormido apenas com a toalha, pensou que deveria levantar, colocar uma roupa, recolher as que deixara espalhadas, secar o cabelo pra que amanhecesse menos desarrumado ou simplesmente aquecer-se de alguma forma. Até ensaiou a disposição pra todas essas coisas, quase teve até vontade de fazê-las, mas continuou deitada, dessa vez acordada, olhando pro teto.
 
Ela amava o silêncio da madrugada e fez um esforço grande pra não deixar aquele momento ser invadido por qualquer pensamento.

Era libertadora a letargia, a simplicidade de aguardar que o dia amanhecesse, observando a paleta de cores da noite serem lentamente substituídas pela paleta dos raios do dia. Era quase pecaminoso com o tudo, com o resto, o deleite, todos os sentimentos que a envolviam, a naturalidade com que aceitava e recebia apenas o momento. 

Quase permitiu evocar algo do ontem, do amanhã, mas foi tão intensamente e avassaladoramente dominada pelo agora que destruiu as intenções antes mesmo de seu início. 

É que estava cansada. Assustadoramente esgotada. Embaraçosamente sem nenhum energia. 

O que já não havia nela, não poderia nem pensar em oferecer.

Era injusto, era estúpido, era até indecente. 

O silêncio, as cores, o fim da noite, o início do dia, a cama em que sonhou a maioria dos sonhos e despertou de todos eles, era tudo, era o mundo, era só o que importava.

Era egoísta, egocêntrico, comodista, sentia-se mal. 

E, inevitavelmente, bem também. 

domingo, 16 de janeiro de 2022

As luzes no teto são coloridas e possuem o formato de lua e estrelas e estão espalhadas por todo o quarto, enquanto ouvimos pela milésima vez a música que vc adora dançar. A coreografia me deixa aqui: deitada no chão, maos pro teto, tentando tocar projeçoes de estrelas, fingindo que as alcanço e sorrindo de lado enquanto observo vc tbm se divertindo. Eu estou admirada e estou apaixonada pela forma que vc atuou (sim, atuou!) na última música. Não é sempre que tenho energia e disposição de terminar a noite ctg pulando e cantando, mas saiba que a vontade sempre está lá. Sempre. Eu queria juntar toda a energia de luas e estrelas reais para te dá. E muito mais que isso. Você merece tudo. 

E vc é tão pequena, mas é tao esperta e independente… eu me sinto tão perdida em alguns momentos por nao saber como te dá o que precisa e como lidar da melhor forma com essa coisa desafiante de educação. E parece, às vezes, que é você quem me ensina. Pq é vc quem me traz pra esse mundo em que é possível tocar estrelas. Você que me recorda o que é abrir a porta de novo pro universo da imaginação. Você… Agora estamos  sorrindo e dançamos bastante pra um final de domingo. Te sinto tao cansada, mas tbm tao disposta a continuar essa festa. Daft Punk fica pedindo que celebremos mais uma vez e parece que vc entendeu melhor do que eu a mensagem, pq quer repeteco, quer continuar fazendo girar o carrossel das coisas que te divertem, quer mais e mais de novo.  Eu adoro te ver feliz assim e me sinto culpada pq vou ter que te convencer a sair já já desse mundo. Penso que ainda vou ter que reviver esse tipo de sentimento de culpa outras vezes pq sei que tbm faz parte do meu papel te trazer pra realidade. Pro que nem sempre é ou vai ser divertido. Mesmo eu querendo que fosse…

Mas enquanto a música nao termina, nos permito esse momento em que juntas, levantamos as maos pro alto e tocamos esse céu que nem existe. E com um abraço, eu agradeço: obrigada por trazer o universo pra mim. 

Entropia II

Eu nunca pensei que alguém da minha família pudesse ter menos que 1,80m, mas ele estava ali e, de olho, acredito que não passava de 1,62. Ele ainda não tinha conversado comigo. Olhou nos meus olhos rapidamente quando me permitiu entrar, sinalizou um local para que eu me sentasse e continuou fumando e me ignorando, enquanto mexia em vários equipamentos dispostos em uma bancada de aço cirúrgico. Eu reconhecia aço cirúrgico porque contrabandeei bastante o material. Era uma moeda de troca cara já que todos os outros metais pareciam estar contaminados. Fiquei me perguntando o quanto valeria aquela mesa, enquanto calculava as possibilidades de sair dali com ela sem ferir muito o baixinho e ele nem me deu tempo de ficar arrependido dos meus próprios pensamentos e ainda de costas, falou:

- Nem pense.

Eu comecei a esboçar minha cara de quem não está entendendo e quase comecei a argumentar, quando ele falou mais uma vez antes que eu sequer iniciasse uma frase:

- Não precisa.

Eu devo ter pensado "como?" ou apenas demonstrado espanto porque ele continuou respondendo os meus pensamentos:

- Não é coisa da nossa família em comum, vem da família da minha mãe. 12 e 05. Não podemos ler pensamentos, mas conseguimos antever qualquer resposta pela situação, modo, tempo ou qualquer simbólico sinal. São muitas as variáveis e encaixam-se de uma forma que eu não entendo como os outros não conseguem perceber algo que para mim é tão simples. 

-...

- Você está cheio de perguntas e talvez eu aceite responder algumas, mas não estou aqui para dialogar. Estou preso nesse mundo sem parentes 12 e 05 e me sinto o único que realmente raciocina aqui. Não aguento mais viver nessa jaula de idiotas. Não me entenda mal, também não consigo mentir pra agradar, não vejo sentido nisso. E nunca faço nada que nao vejo sentido.

-Por que quis me encontrar? - perguntei muito rápido, antes que ele me interrompesse outra vez.

- Porque não encontrei mais ninguém. 

- Ótima resposta se espera que eu fique.

- Eu entendo ironias, mas não as respondo. Não gosto de perder tempo com elas. Sugiro então que pule essa parte comigo. É mais um vez aquele tipo de coisa que não faz sentido. E eu sei que vc vai ficar.

Dessa vez eu não quis respondê-lo com palavras. Cruzei os braços e olhei pra ele. Queria que ele decifrasse a única resposta que eu pensei estar transmitindo naquele momento: um grande não e o pior tipo de xingamento. Foi quando ele falou: 

- Você vai ficar porque precisa saber o que aconteceu com ela.

Acho que nesse momento entreguei o que poderia ser a minha própria expressão de susto, espanto, agonia e da explosão de todo tipo de confusão interna que nunca deixei de sentir toda vez que as conversas e pensamentos tomavam aquela direção.

- É isso. Você não consegue abandonar essa imagem de quem está prestes a cair em um abismo. Isso e os gestos em "C" ao contrário que você faz com o polegar, puxando o indicador. 

-...

- E essa vontade vai me servir porque, por mais que tente, eu não a tenho. Famílias "12 e 05" fazem as melhores armas, mas nunca conseguem utilizá-las. Como "10 e 05” você é combativo, não o maior na escala e seria quase simplório se fosse apenas pelos poderes que alimentam tua casa…

- mas..

- Mas aí tem essa vontade constante de morrer e matar. Acho que podemos começar por isso.

...

Tempestade

É tarde, muito tarde. 

Estou bocejante pelo estacionamento e a chuva fina começa a cair enquanto caminho até o carro. 

O salto do meu scarpin é do tipo confortável pra qualquer um acostumado a usar salto, mas não é o ideal pra correr na chuva, então eu continuo caminhando normalmente e já estou bem perto de me abrigar no calor do veículo,  quando a chuva aumenta. 

Ah, eu só quero chegar no carro e ligar o aquecedor, mas também quero sentir um pouco as gotas de chuva me molhando e me assanhando, bagunçando minhas roupas perfeitamente adequadas e colando elas no corpo, indicando que não há nada que esteja dentro do controle e que o inesperado pode ser perfeito se eu recebê-lo assim. 

Demoro, propositalmente, a abrir a porta do veículo e a ligar o aquecedor porque de alguma forma o frio me fez sentir todo o calor que eu precisava. Já dentro, encosto no assento, cansada, mas viva, fechando os olhos e apenas esperando o momento em que a música que sempre coloco pra tocar comece a repetir de novo as dores que preciso expurgar.

É tarde, muito tarde, estou na estrada, sendo levada pela notas, melodia, pelos pensamentos que a música leva e pelos sentimentos que ela traz, cansada, bagunçada, estranhamente aquecida, acelerando com os relâmpagos, recepcionando os trovões, ignorando a forma em que a tempestade torna perigosa a minha direção e a forma em que minhas emoções me deixam sem rumo.

Me fizeram votos pra que eu aprendesse a amar as tempestades e é estranho. Me sinto bem. 


terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O dia em que comecei a escutar David Bowie

Meu ouvido demorou a amadurecer. Não é que eu nunca tenha escutado musica boa (e esse conceito, eu sei que é bem relativo), mas é que eu demorei a escutar David Bowie.

Esperei, sabe? Uma noite em que faltou luz. Tínhamos muitos planos pra essa noite, envolvendo uma pizza de brócolis (?) e um vinho que já estava na temperatura ideal. Sem energia, o liquidificador não funcionaria e nem o soundbar. Mas o vinho estava ali, a vontade estava ali e era quase o dia de lançamento de Blackstar e o artista havia morrido. Fizemos o que podíamos com o brócolis, amassando e prensando-o de alguma forma e colocando no forno com alguma fome e muita esperança.

A pizza tava horrível, o vinho tava ok, mas haviam as velas, nossa pequena mesa de bar amarela na varanda, uma noite silenciosa e Bowie pra escutar. 

E nesse cenário, como em qualquer outro, o disco tinha a capacidade mesmo funérea de deixar tudo mais profundo e  inesquecível. Naquele dia, o epitáfio de Bowie bateu de uma forma que eu queria, quis e quero (porque nunca vou parar), muito mais dele.

Assim como a chegada e os movimentos extraterrenos que conquistaram e embalaram antes tantos e tantas histórias durante sua vida, a partida e despedida cantante que Bowie deixou marcada em seu último disco, chegaram em minha casa e invadiram o que poderia ter sido apenas uma noite de pizza ruim, sem energia. Mas tinha vinho e Blackstar. E mais uma pra coleção de historias inesquecíveis sobre ele. 


domingo, 2 de janeiro de 2022

2022

- Já virou? Esqueci o celular, algumas pessoas estão se abraçando,será que a gente deveria? Mas sempre tem essas desconexões de horário nesse dia, né? Sempre um grupo é mais ansioso e outro menos e a contagem regressiva NUNCA é uniforme. 

-…

-Já parou pra fazer um balanço do ano que vai embora, resoluções pro próximo, planos?

-…

-Ah, esqueci, você nunca faz planos, até nosso encontro de hoje jogou pro acaso, mesmo as pequenas decisões encarrega a vida de fazer por você.

-…

-Desculpa, é ano novo eu sei e eu não queria estar aqui falando disso, eu queria era estar encantada com os fogos, mas eu nem gosto de fogos, não sei nem ao menos por que vim…

-…

-Não me olha assim, como quem sabe que eu vim sim pra te encontrar e que viria de novo apesar dos fogos. 

-…

-Eu te trouxe uma coisa pequena, toma, eu achei por esses dias. Lembrei logo de você (como se já não lembrasse o bastante). 

-…

- Não agradece, é só aquele bombom de maracujá que apenas você gosta. Pensei que havia sumido do mercado, faz anos que não o via e agora parece que voltou.Não sei como!Só você consome isso e aparentemente eu toda vez que encontro e trago pra tu.

-…

- Talvez ajude para que esse ano de agora seja primeiramente doce. E especial. Com o gosto das coisas que você mais gosta, mesmo as estranhas.

-…

-Porque também são elas que me fazem pensar em você…

-…

-O que é isso? Pra mim? Não esperava, obrigada.

-…

-Um fone de ouvido? Você pensou nos fogos? 

-Ele é desses que te isola completamente das coisas que você não quer ouvir e te deixa ouvindo apenas as que você gosta. Fiz também uma playlist das que você gosta. 

-…

-Sim, eu sei. É o tipo de nada que é tudo. Como o bombom de maracujá. Coloca o fone, irão começar os fogos. Deixa eu te ajudar.

-…

-Ficou lindo em você, vermelho combina com você. Todas as cores. Só deixa eu levantar um pouquinho e te dizer algo rápido, antes dos fogos.

-…

-Que seja perfeito e embalado ao som das músicas que você gosta. Obrigada. Que bom que você está aqui. 

-…