Em um futuro distópico, me pego contabilizando as mortes que ainda consigo contar.
Da família que nascera sobrara eu, Sebastian, e um parente distante que jamais conheci, mas que ontem - não sei como - sinalizou que ainda estava vivo.
Da família que não pude constituí havia ela, Mia. Fatalmente perdida, mas nunca, nenhum dia esquecida.
A última vez entre a gente havia sete homens armados, sete metralhadoras e um segredo que ela não teve tempo de contar.
Muitas vezes eu paro e penso que continuar aqui é uma espécie de suicídio vagaroso e que quando corro pelas ruas de cidade destruídas me fazendo de alvo e me frustro cada vez que consigo escapar, ela pode estar por aí, viva, escapando por um triz das mesmas balas que também passou a procurar.
A carta de ontem foi inesperada, apareceu quando já havia preparado a dose de ácido líquido e estava enfeitiçado com as cores que apareciam no copo, enxergando nelas as minhas próprias coleções de dores.
Um toque, dois, pula o três e vai pro quatro, é quando eu sei que posso abrir a porta, mesmo desacostumado a receber alguém.
O homem era magro, muito magro e tinha uma pele tão branca que me pareceu azul porque em cada lugar do corpo, as veias saltavam escandalosamente. Ele sorriu, poucos dentes, não falou nada, mas abriu a mão e me entregou um relógio. Da mesma forma que chegou, virou as costas e partiu. Me pareceu ser um daqueles que tomaram apenas a primeira dose da vacina contra o vírus que desolou tudo. Só lhe faltava voz e algum juízo. Os não vacinados estavam ainda piores. Eram míseras sombras sem vida. Calados pra sempre, sem voz, sem mente, presos em ideais e tempos autodestrutivos.
Quando abri o relógio, desacostumado a saber as horas, o ponteiro maior marcava 10 e o menor também. O sinal da minha casa. Estranhamente senti um frio na espinha e um arrepio ao mesmo tempo familiar e inusitado por todo corpo. Era esperança. Pelo visto não havia esquecido.
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