quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Calçando sapatos perfeitamente imperfeitos


Ela.
O barulho de seu salto ecoava estranhamento pelo corredor. Não havia notado enquanto atravessava a rua e dava bom dia aos vizinhos da gráfica. Corria tudo tranquilamente, até diferente da normalidade, já que teve tempo de vestir-se com calma, escolher uma saia amarela e ainda combiná-la com blusa e sapatos de salto. Aqui, cabe dizer que esse tipo de coisa, de detalhe, de ter tempo pra si e olhar duas vezes no espelho era algo que lhe fazia excepcionalmente bem, então ainda carregava a sombra do sorriso de bom dia que havia lançado a quase todos por quem passara, quando notou o ruído. Errado? Não era um "toc, toc", era um "toc" seguido de um rasgão metálico que poderia passar despercebido para alguns mas, àquela hora, com o corredor vazio e invadindo um momento que parecia perfeito, quase incomodou. Quase. 
Ela. 
Ela era do tipo que não se incomodava com um "toc, tec", sabe? Não se angustiava quando porventura perdia a salteira de um sapato ou até de ambos e nem se inquietaria se tivesse que passar o dia inteiro usando sapatos imperfeitos. Até gostava. Sempre foi atraída pelas particularidades que deixam no ar uma diferença, um toque, uma marca, uma singularidade. Era mais natural do que achar que o dia começaria e terminaria perfeito. Combinava mais do que considerar que naquele pequeno pedaço de universo em que habitava no momento, todas as notas sairiam irretocáveis e a música que embalaria a trilha sonora seria mais sinfônica que punk rock
Ela.
Sempre teve uma queda por guitarras dissonantes e estridentes e por um solo que não leva a um só lugar, mas a vários ao mesmo tempo. Especialmente quando o dia estava assim e começava assim, perfeito para aceitar tudo. O tipo de dia quase raro naquele tempo de alma blue
O dia perfeito pra calçar sapatos imperfeitos.
O tipo de dia preferido dela.

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