terça-feira, 22 de março de 2022

As fitas K7 do Cara da Paraíso Brinquedos

Era muito cedo, mesmo assim estava na hora.

Ele já havia tomado banho e separado a camisa da pequena empresa que administrava.

Recolheu o caderno onde registrava os fiados, colocou a mochila pesada nas costas e não teve oportunidade de esquecer a caixa de ferramentas.Perto da porta,como um bilhete que escrevia pra si mesmo, já encontrava-se depositada. Assim como as fitas. Objetos sacros, importantes e essenciais pro seu ofício, inconcebíveis de esquecer.

E é sobre as fitas que quero falar hoje porque ninguém guarda, conserva e utiliza essa mídia tão bem quanto ele. Longos anos de gravações, aguardando serem tocadas pelas rádios suas músicas favoritas.Mesmo que o tempo e as novas mídias tornassem a tarefa ultrapassada, mesmo que o atual alcance entre ele e essas canções, estivessem apenas a curta distância de um download (ainda não estamos na época dos streamings), mesmo que tudo indicasse que aquele passatempo - assim como sua própria juventude - estava obsoleto, nada superava o momento de apertar o “rec”, quando o locutor anunciava a próxima música e os acordes iniciais indicavam que valia a pena guardar. 


O Cara da Paraíso Brinquedos não tinha toca fitas no carro e nem gravador. Carregava um stereo que devorava pilhas quando não utilizava eletricidade e por isso passava longos minutos entre sua casa e o trabalho dirigindo em silêncio. Ali, pensava e contabilizava as músicas que tinham sido gravadas no dia anterior, ficava orgulhoso de ter armazenado algumas faixas raras e fazia planos pra combinar o momento adequado de tocá-las em seu pequeno parque de diversões. Sempre achava que quando o carrossel e o novo brinquedo de nave espacial que, audaciosamente, havia decidido instalar, começassem a girar, deveria combinar e embalar as risadas das crianças com grandes canções.Pensou naquela que falava sobre um rádio, notícias cósmicas nebulosas,um homem estelar esperando no céu e seu conselho quase insistente sobre deixar as crianças dançarem livremente.Sim, “Starman” era mesmo uma grande música, um som pra ficar guardado, gravado, colacionado junto de momento inesquecíveis, memórias extraordinárias, impossíveis de apagar. Perfeita para grandes e pequenos parques de diversões. Ainda bem que havia gravado. 

(Veio-lhe à mente a versão brasileira da música. Não sabia exatamente de quem e nem a letra, mas lembrou o refrão: 

“Vou chorar sem medo/ vou lembrar do tempo/ de onde via o mundo azul”. 

Tentaria gravar.)

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