quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Até o último ponto

          Vinte e uma horas. O relógio marca indubitável. Ajeito os jornais, passo os olhos pela sala e, sentado na poltrona, iniciando a folha sete das notícias, ouço a porta abrir. 


- Alexandre! Terminei outro capítulo! Desse você vai gostar, escuta. É sobre Tânia e Edilúcia. Na praia. Adivinha o que estão lendo juntas? “O amor não tem bons sentimentos”. Cada uma, uma página. Posso te mostrar? 


        A voz saía rápido e a respiração falhava no final. Quanto mais alto o seu grau de excitação, menos se fazia inteligível. Fechei o jornal e assenti com a cabeça. Ouvi-lo-ia por duas horas que talvez se arrastassem no tempo. Anotações desconexas, palavras confusas, um embaraço de ideias e sentimentos. Seu texto. Seu livro. Ao final, me encararia, o reflexo denunciando a gota de suor que escorria pelo rosto e com algo parecido com um sorriso, perguntaria: 


- E então? - olhos brilhantes - Diga. Sem piedade. Gostou? 


        Ele entrava sem bater, o escritor. Simplesmente abria a porta. Pelas roupas amassadas e cabelo oleoso, trazia no papel, a obra de uma noite em claro. Ou várias. O provável é que nem tivesse levantado para ir ao banheiro ou se alimentar. O gosto da criação aguça o paladar, invade, farta. Quantas vezes não senti o mesmo?


- Há quanto tempo não dorme? - indago. 

- Dormir! Dormir! O que tem haver o sono com o sonho? Não posso dormir agora Alexandre, não com outro capítulo pedindo para existir.

- Antes da minha opinião, você precisa de um banho e um café. Vou cuidar do último.

  - Não preciso…Veja como pode ser: Tânia acaba de ler o capítulo e elas escutam uma música que toca à distância. Demoram para identificar que é  Billie Holiday, Blue Moon. Edilúcia se levanta…

- Vou pegar o café.


       Observo seu rosto murchar com a interrupção e as luzes parecem diminuir com o movimento, embora os olhos continuem vidrados. Alucinados. Enxergam o que ninguém vê. Sua história, seu livro. Me levanto sem falar e sinto a tontura bater. O braço da cadeira evita a queda, agarro-o, finco os dedos. Merda. Labirintite. Hipoglicemia. Parkinson. Diagnósticos rondam a mente, um zumbido alto no ouvido abafa tudo, abafa o mundo, abafa os delírios dele, o “outro capítulo”. Um outro punhado de alucinações irreais, fugas. Os personagens dançam e leem na praia, enquanto senta na cadeira e esquece a própria fisiologia. 


- Elas dançam por um bom tempo, os pés deixando desenhos na areia, mas logo a natureza curiosa de Tânia, a carrega para outro caminho. De onde vem a música? Não existe casa nas proximidades, pessoas. A praia, à noite, está deserta e se não fosse a amiga, sentiria-se completamente solitária. Quem colocou para tocar? Um sax….


      Ignoro. Também fiz isso hoje. Construí um cenário em que um homem corre, pulmões cheios de oxigênio, joelhos fortes, sem contar os quilômetros. Milhares deles. Sadio, viril, firme. Enquanto eu bambeio com poucos passos. Vertigem. Náusea. O personagem corre quilômetros e meu corpo reclama metros. Tento servir o café na xícara sem tremer, mas borro de marrom o pires em que o deposito e o paninho que já fora branco da bandeja. 


- Talvez se eu quebrasse esse parágrafo aqui e melhorasse o ritmo...


      O personagem corre, dança, indaga, lê capítulos do livro em uma praia deserta. E o escritor eleva a xícara com as mãos trêmulas e sorve o café sem sentir o gosto. Ora, o gosto não está no café, na comida. O que o alimenta são as palavras. Acertara? Errara? Para o leitor? Para ele? De qualquer forma, continuaria. Outro ponto aqui, uma cadência na palavra ali, um parágrafo pequeno e suficiente, mesmo que desconexo, absurdo, como agora. 


- Talvez...


         Ele não sente o gosto do café, não enxerga o paninho borrado, as cortinas empoeiradas, as frutas podres no balcão, não sente o cabelo grudar no couro cabeludo, não ouve as batidas na porta, ele continua. Eleva a xícara até os lábios, mesmo derramando o líquido quase todo pelo caminho. Extravasa. Outro capítulo pedindo para existir! Quanto tempo exigiria dele? Quanta vida? E eu o entendia. Ah, entendia. A alucinação, as noites em claros, a desconexão com o resto do mundo. Eu o entendia, maldição, e como. Seu texto, meu livro. O escritor era eu.


domingo, 9 de julho de 2023

Quando a maré tá alta em Recife, há um perigo escondido em cada esquina iniciado com a primeira gota que cai do céu.

Um perigo que raramente atinge altas torres, bairros privilegiados, pessoas de sorte (?) que podem enclausurar-se e esperar que o tempo melhore, os que, do alto, consultam previsão do tempo para fazer programação. 

...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Tenha calma com tudo, menos com a cerveja no calor de Recife

Tenha calma, embora o verão tenha começado com chuva e trovão.

Tenha calma, há sempre de existir um lugar pra se proteger das tempestades.

Tenha calma com a proximidade das festas. E as ausências que serão choradas e sentidas quando brindarmos a elas.

Tenha calma com o licor, porque em sua doçura encontra-se um torpor inesperado.

E com o vinho não tenha calma. Com a cerveja no calor de Recife também não.

Tenha calma, tenha pausa. Respira pra continuar.

Tenha calma quando ouvires as risadas das crianças. Permite que revigorem energias esquecidas. Motivos pra sorrir tão simples que são assim, infantis.

Tenha calma quando abraçares do mais velho ao mais novo da família. Tenha calma no abraço. Em qualquer abraço. Memoriza, leva, carrega ele. Tatua. 

Tenha calma com a contagem pro final de ano, lembrando que ainda temos tempo pra ser feliz nesse.

Que felicidade se deseja, mas não se programa. Não tenha calma pra ser feliz. Não deixa pra amanhã.

Tenha calma com você, com o "auto-sentimento". Com as cobranças, as percepções rasas, as condições. Seja paciente com os próprios passos. Tenha calma pra percorrer e sentir cada parte do próprio caminho, pra enxergar as pequenas belezas que se escondem nele e permitir-se crescer durante e depois dos obstáculos.

Mas, repito: não tenha calma com a cerveja no calor de Recife. E nem com o vinho em qualquer estado ou tempo. Ou pra se permitir feliz. Nisso não tenha calma.

domingo, 6 de novembro de 2022

Chuva de primavera

Ainda chove na primavera.

Na Bahia, em Canhotinho.

Em Divinópolis, aqui.

Ainda chove na primavera.


Quando chove, guardo o óculos de sol e observo.

As cadeiras dos bares e mesas das calçadas fecham-se por um instante e aguardam.

Aguardam o tempo mudar.


Ainda chove na primavera e eu me recolho às vezes. 

Outras, deixo que os pequenos pingos ou as tempestades passageiras me molhem também.

Combina.

Combina com essa coisa meio termo.

Combina com o meio sorriso desse meio tempo que aguarda as flores que até ontem nem pareciam querer sair.


Ainda chove na primavera e aqui em casa a chuva ajuda a aguar as plantas nos dias em que esquecemos delas.

Um aviso pra não ficarmos totalmente distraídos dessas coisas que parecem apenas complementares, mas que são fundamentais.

Ainda chove na primavera e acabei de enxugar o quintal do jardim.

Pego as cadeiras de praia e distribuo onde o sol aparece tímido, mas aparece.

Ainda chove na primaveira e convido todos a sair de casa. 

Talvez exista um dia inteiro de Sol nessa primeira manhã de chuva. 

Ou mais chuva esperando pra sair.

Ainda chove na primavera e há tanto a esperar dessa inconstância do tempo.

Estações, transformações, ah! 

Ainda chove na primavera.


quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Lusco-fusco

Juana tinha dois tipos de óculos escuros. Os que usava nos dias em que não queria ser reconhecida e os que usava pra chamar atenção.

Aquele era um dia de chamar atenção e o óculos era a única coisa que faltava naquela mulher que Juana via no espelho.

Vestimentas concluídas, se dirige ao estacionamento e aciona o alarme logo no início, como que anunciando sua chegada.

E assim passa o dia, chegando nos lugares como se já esperassem por ela, passando com facilidade pelos caminhos que lhe abriam naturalmente, caminhando com segurança em salto 15, sem desvios, sem tropeços, sem atropelos.

Juana quase foi ao banheiro retocar o batom quando chegou no restaurante, mas resolveu apenas abrir o espelhinho de bolso e ali mesmo pintar nos lábios o carmim.

Reservara uma mesa na varanda pra sentar sozinha, não queria companhia, só atenção a distância, o que interessava não era atrair os outros mas atrair a si e o objetivo maior de tudo já começava a despontar na sua frente…

…o pôr do sol incrível daquele lugar. 

Juana bebericou o champagne e retirou os óculos. 

...

"A beleza não está nem na luz da manhã, nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa ambiguidade" (Lygia Fagundes Telles).


domingo, 7 de agosto de 2022

So What


Duas taças encostadas, manchadas de vermelho no fundo, abandonadas perto da pia e uma garrafa de vinho vazia.


Miles Davis retido no ambiente (“so what”), 

a rebeldia de um jazz mítico de um músico genial, ecos da noite passada.


Paredes frias de um dia frio, manhã que deveria esquentar um pouco e lentamente e suavemente cumpre esse papel: esse de desgelar o tempo.


Estico o corpo.

Coloco a xícara na mesa.

Preparo o café e amo o cheiro inconfundível que invade o ambiente (como descrever cheiro de café? Casa? Café tem cheiro de casa?). 

Preparo algo bom de gostar e aguardo passos descerem a escada.

Sim. 

Ainda sinto frio.

Está aqui, indelével, em cada um dos meus ossos.

Sim. 

Ainda é inverno.

E que seja!

Que seja inverno.

Não importa. 

É tempo de sorrir com as estações. 


domingo, 3 de abril de 2022

Gratidão à Lygia


“Me leia enquanto estou quente”.

Não deixe solitárias minhas linhas incendiárias.

Não abandone o meu texto nos momentos de combustão.

Por favor, permita-me as alterações de alguns sentidos enquanto escrevo.

Aceite o vulcão, aceite a explosão, aceite-me inflamada.

Abranda, afaga, com olhos afetuosos as frases incivilizadas.

Compreende, sim, entende-me insolente, impertinente, deselegante, pouco educada.

Mulher. 

Humana.

Ama também e benevolente cada palavra inconsequente, descontrolada. 

Permite licença ao meu ardor, à minha paixão, à vontade de existir associada à confusão da existência. 


(Ao escrever, sinto as emoções transformando-se em palavras, lanço perguntas, formulo respostas, novos questionamentos, toco minha alma em pontos delicados, me conheço, me desconheço, faço planos, desfaço, sem pretensões, mas esperançosamente, espero tocar sentimentos 

além dos meus, imagino leitores, espero que gostem, embora duvido que entendam). 


Me acompanha, me folheia, até o fim do texto, 

não precisa adorá-lo, nem compreende-lo, nem minimamente gostar do que escrevo,

mas, por favor, “me leia enquanto estou quente”.


(Humilde homenagem a Lygia Fagundes Telles)