quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Tenha calma com tudo, menos com a cerveja no calor de Recife

Tenha calma, embora o verão tenha começado com chuva e trovão.

Tenha calma, há sempre de existir um lugar pra se proteger das tempestades.

Tenha calma com a proximidade das festas. E as ausências que serão choradas e sentidas quando brindarmos a elas.

Tenha calma com o licor, porque em sua doçura encontra-se um torpor inesperado.

E com o vinho não tenha calma. Com a cerveja no calor de Recife também não.

Tenha calma, tenha pausa. Respira pra continuar.

Tenha calma quando ouvires as risadas das crianças. Permite que revigorem energias esquecidas. Motivos pra sorrir tão simples que são assim, infantis.

Tenha calma quando abraçares do mais velho ao mais novo da família. Tenha calma no abraço. Em qualquer abraço. Memoriza, leva, carrega ele. Tatua. 

Tenha calma com a contagem pro final de ano, lembrando que ainda temos tempo pra ser feliz nesse.

Que felicidade se deseja, mas não se programa. Não tenha calma pra ser feliz. Não deixa pra amanhã.

Tenha calma com você, com o "auto-sentimento". Com as cobranças, as percepções rasas, as condições. Seja paciente com os próprios passos. Tenha calma pra percorrer e sentir cada parte do próprio caminho, pra enxergar as pequenas belezas que se escondem nele e permitir-se crescer durante e depois dos obstáculos.

Mas, repito: não tenha calma com a cerveja no calor de Recife. E nem com o vinho em qualquer estado ou tempo. Ou pra se permitir feliz. Nisso não tenha calma.

Renascentista

Como pintora era boa, mas não excelente.

Tinha mais vontade e amor pela arte do que habilidade.
Sabia - no entanto - que combinava bem as cores e percebia onde encaixá-las exatamente na tela. Era colorista. 

Fazia tempo que deixara uma obra inacabada. Falar "obra" é ser generoso e falar "trabalho" não cabe, é arte, então, digamos que seja um quadro. Um quadro inacabado. 

Nas primeiras pinceladas, o quadro já foi além do que esperava. As cores, os desenhos, as ideias que prometia na tela, os espaços preenchidos com expertise, a execução meticulosa, a beleza, a intensidade, a sinceridade, as formas. Tudo maior e melhor, muito além de sua executora. 

Era um quadro tão lindo e admirável que não conseguia visualizá-lo no meio de todas as outras obras já finalizadas.
 
Seu precioso pretenso perfeito abandonado quadro. Inacabado.

Controlled

Dessa vez, teve tempo. Na verdade, bastante. Entre o longo jantar e o passeio de volta, descobriram que a conversa fluía tão bem quanto o sexo. 

A decisão de caminhar em vez de pedir um transporte pareceu irrazoável, mas permitiu uma ótima visão da lua. Sentiu o vento nos cabelos e arrepios no corpo, jogaram risadas na atmosfera, trocaram passos, momentos, segredos, sentimentos.

Embora houvesse, dessa vez, programado a noite, planejado horário e ensaiado limites, sentia-se outra vez desconcertada, já que a sensação de controle sempre serviu-lhe bem, mas o contrário um fiasco. 

Mesmo assim, deixou. Permitiu que tudo caminhasse para um grande e arrebatador fiasco. 

Importuno e inevitável. 

Ravishing

A verdade é que não teve tempo de pensar. Quando, silenciosamente, concordaram em sair dali, foi tudo tão rápido que iniciar e terminar qualquer pensamento foi também, obviamente, impossível. 

Sim, deixou-se levar. Mãos nas coxas, leves puxões nos cabelos, olhares, desejo, beijos com um sutil sabor de álcool, …

Historicamente, seus enlaces eram suaves e programados. Tudo dentro do roteiro, da consciência, caminhando para um destino conhecido.

Naquele momento, no entanto, o que quer que houvesse programado para noite não deveria ser intenso. Menos ainda imoderado. Arrebatador.

Há pouca vantagem em se sentir arrebatado.

domingo, 6 de novembro de 2022

Chuva de primavera

Ainda chove na primavera.

Na Bahia, em Canhotinho.

Em Divinópolis, aqui.

Ainda chove na primavera.


Quando chove, guardo o óculos de sol e observo.

As cadeiras dos bares e mesas das calçadas fecham-se por um instante e aguardam.

Aguardam o tempo mudar.


Ainda chove na primavera e eu me recolho às vezes. 

Outras, deixo que os pequenos pingos ou as tempestades passageiras me molhem também.

Combina.

Combina com essa coisa meio termo.

Combina com o meio sorriso desse meio tempo que aguarda as flores que até ontem nem pareciam querer sair.


Ainda chove na primavera e aqui em casa a chuva ajuda a aguar as plantas nos dias em que esquecemos delas.

Um aviso pra não ficarmos totalmente distraídos dessas coisas que parecem apenas complementares, mas que são fundamentais.

Ainda chove na primavera e acabei de enxugar o quintal do jardim.

Pego as cadeiras de praia e distribuo onde o sol aparece tímido, mas aparece.

Ainda chove na primaveira e convido todos a sair de casa. 

Talvez exista um dia inteiro de Sol nessa primeira manhã de chuva. 

Ou mais chuva esperando pra sair.

Ainda chove na primavera e há tanto a esperar dessa inconstância do tempo.

Estações, transformações, ah! 

Ainda chove na primavera.


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Preciosizar


Dificilmente passo muito tempo ofendida.
Dois minutos, dois dias. Não duro mais que isso.
Sou extremamente falha como "ofendível".
Esqueço, balanceio, nunca acho que vale a pena gastar energia assim.

Tempo é algo que sempre tive a impressão que me falta.
Me falta pro futuro.
Como se - com uma navalha - o destino aguardasse algo pra mim.
Mórbida? Talvez. 
Só que é o contrário.

O contrário porque sempre fui contrária a isso.
Esperando o pior, tento viver o melhor. 
É quase como se todo o meu positivismo viesse do meu negativismo, entende?
"E se tiver pouco tempo, o que fazer com o tempo que tenho?"
É quando passo a reparar - bem mais - nas coisas que me rodeiam.
Preciosizá-las - existe essa palavra?
Claro que não, mas deveria.
Deveria porque é importante preciosizar as coisas.
Cada partícula, cada detalhe.


(Preciosizar: verbo inexistente; ato ou ação de enxergar a suntuosidade das coisas, o maravilhoso). 

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Morto ou vivo?


Vivo, tão vivo.

Mesmo que esteja morto.


É apenas uma forma de olhar, 

o lado diferente do muro.


Vivos, tão vivos.

Estamos nós?

Estão os mortos?

Uma questão de ângulo, 

de geometria interna,

espaço e tempo

local.


Aqui os relógios sinalizam os minutos. 

Percorrem com “tic e tac” o tempo que falta pra chegarmos lá.

Como será que o tempo gira do outro lado?

Será que, ao contrário, contabiliza-se o tempo de voltar? 

Mas quem é que vai?

E quem é que volta?

Talvez estejamos todos mortos-vivos,

Aqui ou lá,

Chegando, partindo.

Percorrendo as estradas que levam aos reencontros.

Ou talvez o que nem exista seja, de fato, o morrer.

As pessoas que amo estão vivas.

Não importa o que acontece com a química de seus corpos.

Em meu coração seguem, em meu coração vivem, em minhas memórias sorriem, em meus pensamentos florescem e semeiam tudo o que plantaram em mim.

Vivos!

Tão Vivos!

Estão vivos.

Como pude questionar?

Não existem mortos.

sábado, 22 de outubro de 2022

Silêncio

(Aproveitando o ensejo, um texto sobre desejo).

Subitamente, emergi do oceano. Nem saberia te dizer onde estive, já que nem eu sei.

Respirei profundamente - como se sempre tivesse me faltado ar - te vi. 

Dirigi-me lentamente em tua direção, as roupas molhadas pesando, me impedindo os longos passos. 

Na ausência de ondas, o mar inteiro prometia tranquilidade e calma, mas você não. Você não.

Capturei teu lindo e doce olhar em dúvida se vagueava pelo meu corpo ou pelo meu rosto. Capturei tua encantadora e generosa alma, questionando se eu sentia frio. Capturei tuas mãos, antes que tocassem as minhas. 

Passei a caminhar os passos que nos aproximavam e deixar pegadas profundas na areia. Havia a praia, o silêncio e a liberdade que existe em não precisar romper o silêncio. 

....

 (...)

Havia a praia, o silêncio e a liberdade que existe em não precisar romper o silêncio. 

(...)

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Encontro na Clareira


Fora um longo caminho até a clareira. 
Um longo caminho em que tomou, ousadamente, as curvas e retas que sempre temeu.
Enxergou nada quando não havia nada pra enxergar e tudo, quando deveria ver tudo; arranhou-se em cada galho pontiagudo, sangrou com os cortes no corpo, na alma, cauterizou com o fogo à direita, mergulhou em lagos desconhecidos à esquerda, quase congelou de frio.
Descobriu que algumas águas a acalmavam, por mais que suas profundezas a assustassem de início. 
Desafogada, curou-se em lagos profundos.
 
E perdeu-se, encontrou-se, continuou.

Sentia-se diferente do que foi, aliás, entre espinhos e rosas, seguia o caminho. 
O caminho necessário para se transformar em mulher. 
A mulher que sempre quisera ser.
A mulher que encontrava agora na clareira.
E ela ansiava por conhecê-la. 

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

One for my Baby

Capturei teu lindo e doce olhar em dúvida se vagueava pelo meu corpo ou pelo meu rosto. Capturei tua encantadora e generosa alma, questionando se eu sentia frio. 

(…)

Te amei como se fosse o meu último ato no mundo. O único ato. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Em cada instante, superações brincalhonas escondem-se propositalmente mal, ansiando serem encontradas.

Maculada

Era muito cedo pra sentir-se assim.

A febre havia passado e no amanhã girava a esperança de que as coisas voltariam ao normal.

Normal? Dentro do possível. Do possível de quem carrega um segredo, uma mácula. O amanhã de quem passou mais de um ano sentindo-se contagiosa. Segregada. O amanhã de quem foi afastada de dias normais, de convivências. De quem perdeu além de aulas sobre matérias novas que impactariam em um aprendizado em ascendência, descobertas da juventude que teria que adiar pra depois. Ou pra nunca porque a morte pairava em cada possibilidade de esperança. Curada, porém, sentia-se atrasada, maculada, roubada, proibida. Sentia-se caindo em locais em que desconhecia as linguagens, as pessoas, as histórias, os costumes e os sonhos. Sentia-se sem sonhos. Desconexa. Desconectada. Avessa. Contagiosa. Tóxica e só. No futuro, pairava o desafio de reencontrar e redescobrir entre tantas coisas, ela mesma em especial.

Nenhum médico no mundo - falou o especialista - notaria a cicatriz. A tempestade havia passado. Dera uma rasteira na morte e escapara. “Amanhã já pode voltar”. Já? 

Feliz com as perspectivas advindas da alta, mas completamente perdida sobre quais seriam elas, perguntava-se pra onde iria a partir dali. Tão, tão jovem, era muito, muito cedo pra sentir-se assim. 

E agora, talvez, muito, muito tarde. 

Só que hoje amanheceu lembrando.

(Foi quando uma presença invisível abriu a porta do quarto discretamente para então batê-la um pouco depois. Recebeu resiliente e sentiu que compreendia. Com a quantidade de pessoas que amava indo embora, havia resolvido descrer nas coisas que separam a vida da morte. Há certas presenças no ar muito mais vivas do que pessoas vivas, concluiu). 


quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Lusco-fusco

Juana tinha dois tipos de óculos escuros. Os que usava nos dias em que não queria ser reconhecida e os que usava pra chamar atenção.

Aquele era um dia de chamar atenção e o óculos era a única coisa que faltava naquela mulher que Juana via no espelho.

Vestimentas concluídas, se dirige ao estacionamento e aciona o alarme logo no início, como que anunciando sua chegada.

E assim passa o dia, chegando nos lugares como se já esperassem por ela, passando com facilidade pelos caminhos que lhe abriam naturalmente, caminhando com segurança em salto 15, sem desvios, sem tropeços, sem atropelos.

Juana quase foi ao banheiro retocar o batom quando chegou no restaurante, mas resolveu apenas abrir o espelhinho de bolso e ali mesmo pintar nos lábios o carmim.

Reservara uma mesa na varanda pra sentar sozinha, não queria companhia, só atenção a distância, o que interessava não era atrair os outros mas atrair a si e o objetivo maior de tudo já começava a despontar na sua frente…

…o pôr do sol incrível daquele lugar. 

Juana bebericou o champagne e retirou os óculos. 

...

"A beleza não está nem na luz da manhã, nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa ambiguidade" (Lygia Fagundes Telles).


Infatuation

Eu pensei que estava preparada pra tudo, mas não pro meu coração em descompasso. 

Incontrolável, diferente, não soava como boa música, era mais alto e ininteligível que qualquer som que ouvira antes, nem de longe era confortável.

Como regular? Como organizar a batida? Como trazê-la para o campo comum, seguro? Como normalizar e voltar as peças desmontadas lá dentro pro lugar?

Num quebra-cabeça descontruído, quis arrancar o coração pra reencontrar os meus próprios encaixes, mas fui impedida.

A paixão tinha outros planos.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Throw the dice, cold as ice

No meio das cartas, vermelhas, brancas e negras na mesa, soube que não haveria concordância sobre o final. De toda forma, o jogo estaria perdido ou ganho. Dependia do ângulo em que se olhasse. 

Da minha parte, lembrei que qualquer que fosse o resultado, deveria haver um cumprimento no final. Parabéns e desculpa misturados em uma palavra que comecei a inventar pra te dizer. Ou calar. Certas coisas pairam no momento e são transmitidas independente da forma que se digam elas. Ou nem digam.

Baixei o jogo sem contabilizar minhas chances, minhas cartas. Contabilizei isso sim, a distância que faltava pra chegar nas coisas do mundo que pudessem colaborar pra tua felicidade, que estivessem e não estivessem ao meu alcance pra desejar, pra oferecer, pra transmitir pra você; quase consegui contar também a quantidade enorme de estrelas que enxerguei nos teus olhos, assim que baixasse as tuas. Com um esgar, te ofereci um ensaio de sorriso e uma turbilhão de sentimentos. No mais profundo silêncio pro mundo e na conversa longa que nunca parou e nunca para nos universos em que residem as almas, combinamos de encerrar o jogo. Nenhum sentimento de vitória poderia existir em sequer te imaginar perder. 

domingo, 7 de agosto de 2022

So What


Duas taças encostadas, manchadas de vermelho no fundo, abandonadas perto da pia e uma garrafa de vinho vazia.


Miles Davis retido no ambiente (“so what”), 

a rebeldia de um jazz mítico de um músico genial, ecos da noite passada.


Paredes frias de um dia frio, manhã que deveria esquentar um pouco e lentamente e suavemente cumpre esse papel: esse de desgelar o tempo.


Estico o corpo.

Coloco a xícara na mesa.

Preparo o café e amo o cheiro inconfundível que invade o ambiente (como descrever cheiro de café? Casa? Café tem cheiro de casa?). 

Preparo algo bom de gostar e aguardo passos descerem a escada.

Sim. 

Ainda sinto frio.

Está aqui, indelével, em cada um dos meus ossos.

Sim. 

Ainda é inverno.

E que seja!

Que seja inverno.

Não importa. 

É tempo de sorrir com as estações. 


Ausente presente


Esteve presente em cada intenção de felicidade, em cada esquina que dobrei, nos caminhos que percorri e percorro.
Foi alicerce, carinho e fortaleza.
Minha base, meu apoio, meu tudo.

Comecei a acreditar em conexões de outra vida e começo a acreditar em reencontros em outras vidas, tudo por causa dela. 
Sinto falta de alisar o seu cabelo fininho e depositar um beijo em sua cabeça;  sinto falta do sorriso, das gargalhadas que sempre dividimos, dos telefonemas, dos nossos passeios na cidade, de cada um dos encontros, de tocar sua mão.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Typewriter

A vontade de escrever persiste, embora a inspiração tenha partido.

Minha necessidade por letras, de imediato, transfere-se para a leitura porque, definitavamente, preciso delas para me movimentar.

Sem poesia, assino essas linhas em contumaz insistência.

Teimo com o que quer que me impediria de escrever, abnego meus próprios argumentos, ignoro a pouca paixão por esse texto, continuo colocando um próximo parágrafo depois desse. Não quero parar. 

A vontade de escrever existe, embora a inspiração não.

Algumas coisas partem, outras findam bruscamente, algumas fazem uma volta longa para apenas girar no mesmo lugar. Raras coisas se transmutam e se adaptam sem se perder completamente. Permanecer não permanece. Se permanece, é diferente. Como esse pedaço que está aqui. 

A vontade de escrever insiste, embora menos dependente de inspiração. 

Reconheço, claro, nas coisas e pessoas, nos momentos e movimentos, no que respiro e no que transpiro, nos minutos e nos segundos, grandes impulsionadores de longos textos.

Embora agora, nesse instante singular e particular em que - resoluta e sincera - assino essas linhas, more apenas a singela vontade de fazer nascer alguma coisa que acene de volta e com alegria para aquela menina estranha que pediu uma máquina de escrever em vez de um outro presente de natal e que algumas vezes me fala (quando não me grita): continua.  

terça-feira, 28 de junho de 2022

Pequeno pensamento de terça que combinaria mais com o domingo

Uma estrela de luz, uma imensidão à direita, um universo à esquerda, um pequeno raio de sol escondido em um sorriso.

Um beleza serena, bondosa, embora incompleta. E o que é completo? O que é o completo? Se é.

Um respiro profundo, cheiros de coisas conhecidas, barulhos na vizinhança, estalos da casa, do corpo, do frio. Talvez frio. Talvez me esquente. Talvez te esquente. Talvez. 

Raios de luz que não são quentes, iluminando apesar da aparência. Iluminando.
Suficientes, sinceros, singelos. 
Quase toco a poeirinha que mora neles.
Não consigo. 
Impossível. 
Embora absorva a pequena mensagem de esperança. 
Sim!
Na pele.
Dourando.
Marcando.

E é o que importa, não é?


segunda-feira, 13 de junho de 2022

O que assusta mais que fantasmas


Eram quase cinco horas da tarde, havia chegado cedo do trabalho e corri pra brincar com meu filho Gael no quarto. Espalhamos, dividimos e compartilhamos muita coisa - especialmente risadas e momentos pra guardar e lembrar e, apesar do meu habitual cansaço, torci que o tempo passasse devagar e que aquele instante durasse pra sempre.

Estar cansada é o meu normal. Parto, puerpério, amamentação, rede de apoio distante, pandemia, educação, trabalho, família, casa, vida social. No meio disso tudo, me encontrar e ter energia é bem difícil às vezes, embora naquele dia não. Naquele dia, eu armei a discoteca e espalhei com ele uns doze brinquedos pelo quarto, sem pensar na trabalheira que seria colocar tudo no lugar e convencê-lo a parar, tomar banho, jantar e dormir depois. Ou me engano ou foi o café. Me sentia energizada.

Embora ele tenha tanta imaginação que eu mal alcanço, não esperava a revelação que me deixaria atônita e sem saber o que fazer. Ainda acho que foi um sonho, ainda acho que ele só repetiu algo que gravou de algum desenho ou livro, muito provavelmente ele estava inventando, mas seus pequenos olhos estavam tão sérios e tristes, que me peguei acreditando. 

Segundo Gael, havia outra criança no quarto. Um menino, de chapéu azul, que havia perdido os pais e estava triste por isso. "Ele não sabe onde tá a mamãe e o papai dele". Pedi que apontasse o lugar em que a criança estava, mas meu filho continuou apenas repetindo a história e fazendo sinal de "não sei". 

Antes de pensar em espíritos e me aterrorizar com a situação, outra coisa me ocorreu. Um temor maior, ao mesmo tempo amor, reza e torcida. Que me fosse permitido muitos anos e muitas ocasiões em que pudesse simplesmente estar presente junto do meu filho. Mesmo sem energia, mesmo me sentido aquém, mesmo nos dias em que me falta "café". Olhar dentro do seus olhos, transmitir mil milhões de sentimentos bons, aquecê-lo e fazê-lo entender que sempre, de alguma forma, da que puder e conseguir, estarei ali. 

E que em nossos momentos, acompanhados ou não de coisas que poderiam assombrar, deixemos os minutos durarem pra sempre, porque o que importam ponteiros de relógios que apontam e ditam coisas diferentes se decidirmos que não deverá ser assim?

sexta-feira, 10 de junho de 2022

IV- Um beijo de quem vai dançar e chorar as festas juninas e um abraço que te convida pra ver o sol nascer (editar)

Tania,

Ouvi teu áudio emocionado ontem, falando sobre o quão especial foi a última carta que enviei e me pedindo tempo pra responder à altura.

Mal sabe você, irmã, que especial é termos iniciado essa correspondência e qualquer palavra tua é mais que suficiente pra transformar todo o meu dia. Mesmo a intenção de te escrever, mesmo esse momento de agora, em que atropelo a tua carta e te envio essa minha, me faz abrir um sorriso muito meu. Sabe aquele? Pequeno e discreto, mas que tá ali? Te dedico ele agora.

O motivo que me fez pular tua resposta, nasce da simples vontade de querer te escrever. Ou talvez, sendo sincero, das coisas que me aconteceram por esses dias e que tive vontade de te contar porque sei que você compreenderia. É tão natural de você isso de não julgar. Me acostumei com esse espaço de acolhimento, é confortável, é como um abraço. Saudades do teu. Te escrevo querendo um abraço.

Tem duas datas pela frente que estão mexendo comigo, irmã. E talvez outra mais. O certo é que o dia 14 e dia 15 do mês de junho desse ano serão diferente. O primeiro, aniversário do nosso pai e o segundo o aniversário de nossa tia, cujas comemorações foram adiadas com a morte deles. Indefinidamente. 

Talvez não fosse tão difícil e não me fizesse pensar no tema de forma tão frequente se não ocorressem, coincidentemente, em sequencia. Assim como foi a partida deles. Assim como vieram os lutos. Talvez também eu lidaria melhor e deixaria passar essa triste coincidência, Tania, se eu não estivesse me sentindo enganado pela própria forma que sempre preferi enxergar a vida. Esperando o afago, no lugar do golpe. Jamais acreditando que algo poderia me derrubar porque eu não permito. Achando que me quebrar é difícil, que vou em frente, que não pestanejo, que sou suficientemente forte, apesar da minha aparência frágil. E, pelo visto, não é bem assim.

O fato é que eu sempre me levanto sim, irmã, sempre. Mas eu pestanejo. Você não vai notar, se não me olhar de perto (o que é difícil porque não permito), mas eu pisco, minhas lágrimas caem, abaixo a cabeça pra vê-las molharem o chão discretamente, dobro um joelho, vou me erguendo aos poucos e lentamente piso no espaço onde as lágrimas caíram apagando-as dali. E assim, escondo e parto. Só que algumas vezes é bem mais difícil. 

Ah, irmã, estou bem dramático hoje, falando de morte e de lágrimas e também isso me incomoda. Levantei até na terapia esse tema, sobre mudanças. Disse que tinha saudade de mim, de ser mais otimista. 

Pra terapeuta, essa questão é mais latente com a juventude, com a ingenuidade e é próprio do amadurecimento mesmo saber que faz tanto parte da vida as coisas boas quanto as ruins. Até mais as ruins (embora os momentos de felicidade sejam tão intensos e poderosos que a impressão é que sobrepõem todos os outros). Só que enxergar e olhar apenas pra uma delas é o que adoece as pessoas, Tania. E o que me salva é concordar com isso e não me permitir assim. 

As vontades que tenho de me alegrar, a disposição que tenho pra isso, mesmo quando me sinto desconstruído, partido e quebrado, é bem de mim. Assim como tem sido a permissão que venho buscando de me sentir a vontade quando nao estou bem também. Somos mais que algumas partes, querida irmã. Somos várias e todas elas - concordas? 

No momento, quero sorrir. Estou com boa energia pra isso. Também quero sentir essas datas ruins que me esperam como algo que inevitavelmente irá doer e, passando,  viver as festas juninas que virão depois delas. Eu gosto. Gosto de odiar o barulho de fogos, mas achar bonito vê-los no céu. Gosto de ouvir alguém cantando sobre os dois tipos de saudade e como algumas são amargas "que nem jiló", enquanto outras apenas passam. Gosto de dançar ao som de músicas que me despertam sentimentos e gosto de estar perto das pessoas que também me despertam isso. E olha que nem tenho filhos! Fico imaginando como me sentiria cada vez que ouvisse até seus simples passos pelo corredor. E olha que não tenho amor - e só posso imaginar como algo assim é poderoso e trasnformador. A verdade é que gosto de continuar, Tania. 

Sabe Cartola? Hoje de manhã, caminhando, escutei Cartola em algum lugar do centro da cidade. Era pra estarem colocando Pagode Russo em último volume, mas ali estava alguém, como eu, escolhendo ouvir que nas esquinas sempre existirão coisas que irão nos transformar, que triturarão os nossos sonhos, que nos quebram. É inevitável. Só que é aí que a composição dele me acerta. No agridoce. No ponto em que reconhece, aceita, não nega e, apesar de, não deixa de ir. 

Irmã, nunca fui de transcrever textos ou músicas de outras pessoas nas minhas cartas, mas dessa vez, me permite? Parece que me calar e deixar Cartola falar e cantar por mim seria o melhor desfecho. Encerro essas linhas minhas, te pedindo que além de ler, escute essa música. Há uma ondulação no timbre, na voz e nas notas, como que denotando o que ele quer contar ali. Tem um vai e vem que combina com tudo que te escrevo agora. E mais: o que tu vai entender, mesmo que eu não precise te falar sobre. A poesia.

"Deixe-me ir/Preciso andar/Vou por aí a procurar /Rir pra não chorar
Quero assistir ao sol nascer/Ver as águas dos rios correr/Ouvir os pássaros cantar/Eu quero nascer/Quero viver
Deixe-me ir/Preciso andar/Vou por aí a procurar /Rir pra não chorar

Se alguém por mim perguntar/Diga que eu só vou voltar/Depois que me encontrar".

Um beijo de quem vai dançar e chorar as festas juninas e um abraço de quem quer assistir ao sol nascer e te convida para as duas coisas,
MarCê-lo.
Obs: Nem te perguntei sobre você porque ainda estou esperando as respostas da última carta. Me atualiza duas vezes agora. 

terça-feira, 7 de junho de 2022

III - Um beijo de café e um abraço cheio de vontade de ouvir pássaros

Querida Tania,

Iniciei os meus rituais do trabalho e estava quase começando a me resignar com outro dia igual, quando tuas palavras chegaram e, com elas, inspirações pra recomeços.

Sinceramente, não achei que teria disposição pra esse dia. Está frio, dormi mal, comi pouco e emagreci ainda mais - minhas roupas denunciam isso, apesar da minha balança sem pilha continuar calada.

Eu tenho um espelho grande em casa - você sabe apesar de nunca ter vindo aqui, te mostrei no vídeo que enviei assim que me mudei pra essa casa. Além de apontar minha habitual magreza, no dia a dia, ele reflete e me mostra o algo que aprendi a mostrar pra todos. A aparência. Lembra que sempre desejei que vissem além? Fugi contigo durante a faculdade pra tatuar isso. Pois bem, continuo. 

Sobre a casa e o vídeo, até me recordei da alegria com a mudança, Tania. Da empolgação. É estranho como podemos ainda ser ingênuos com trinta e poucos anos, não é?  Ou como é mais doce nos enganar pra evitar amargores indigeríveis. Naquele momento, Tania, eu achei que tudo iria melhorar. Uma casa ampla, um jardim, uma grama pra pisar, deitar, uma enorme varanda pra assistir nascer o dia. Um quintal de fundo com paredes brancas - onde sonhei escrever e desenhar boas histórias pros visitantes lerem e se alegrarem enquanto se reuniam ao redor da churrasqueira. Eu preparei todo o ambiente pra visitas, Tania. Mais que o local, preparei meu coração. Ando muito cansado de não ver pessoas. Lembra como era o entra e sai da nossa antiga casa? Aquele barulho e bagunça que a gente se acostumou? A campainha que toca, alguém que abre a porta de repente (aqui todos torcendo que fosse da família), alguém que corre pra abrir, o "já vai" das tias, o cachorro do vizinho - Tito - latindo com a movimentação? Pois é, por aqui só escuto passarinhos. 

E não é que eu não goste de barulho de pássaros, Tania, você sabe que eu tenho uma predisposição natural pra gostar de coisas que vivem e até mais das que voam e pássaros sempre foram a minha paixão. Mas é nesse silêncio que incomoda que tenho encontrado eles. Deveria ser um alento pro meu coração, um canto pra saudar o dia. Então por que, na verdade, é uma agonia?

Me decepciono comigo, irmã. Parece que poderia morar em vários lugares que sonhei a vida inteira e ainda assim encontraria motivos pra não me sentir bem neles. Mesmo com passarinhos. 

Mas é cedo e um café me espera na cafeteira. Vou pegar a xícara e me aquecer com cada gole, assim como me aqueci com tuas palavras,

Fico feliz que continues amando as águas. Mergulhar nas profundezes, nas pessoas, nos sentimentos, sempre foi algo muito próprio seu. Está no brilho dos teus olhos quando conversas, sorris, falas besteiras. Quando perguntas por mim. Por todos. No carinho e no cuidado. 

Não saber de si acho que é muito próprio de quem realmente está se buscando - é o que me convenço. E, olha, o que tens passado é de se virar e desvirar do avesso. E aí estás, em busca. Não se cobra tanto, seja paciente e benevolente com você assim como tão bem és com todos. Também não tenta demais achar as respostas, deixa que venham. Dia a dia, momentum a momentum (lembra?). Viva.

Te agradeço por tanto, mas hoje só pelo agora. No agora, não escuto nada.... mas não é que até me bateu vontade de escutar os passarinhos? A culpada é você.

Um beijo quente de café e um abraço cheio de vontade de ouvir pássaros,

MarCELo.

Obs: vou tentar revisitar as paredes e te enviar coisas boas que estão registradas nelas, desde que me prometas enviar de volta o que quer que toque por aí também. 

segunda-feira, 6 de junho de 2022

II - Um beijo com saudade e um abraço de quem mergulha (por Isabela Lima)

Querido Marcelo: 

Imagino bem você lavando os pratos e me pego rindo! Você sempre fugia dessa "desventurosa tarefa", palavras sua.

Lembro da janela da sua cozinha: grande e iluminada! Tenho que te mandar pés de flores,  pés de frutas , sementes e afins. Sabes que gosto de pesquisar sobre os significados das flores e as que eu te mandar , irão definitivamente com um bilhete de apresentação,  falando um pouco da sua personalidade e suas esperanças e opiniões sobre sua vida de flor. 

Você falou em surto... costumo achar que surtos são como profundos mergulhos internos. Não aqueles de filmes, bonitos... mas mergulhos  inesperados, onde nos pegamos desajeitados, nús, sem roupa de banho, sem ao menos prender a respiração antes do afogamento em si mesmo. 

Mas você que tem o “mar” abrindo seu nome,  Marcelo, saberá navegar. Veja só, acabo de perceber que também possuis o “céu” no nome, sem dúvida um nome auspicioso.  

Quando se sentir pronto, reveja esse espaço, escute as músicas cujos trechos você tatuou no quintal, veja novamente os filmes e releia os livros. O luto luta contra a gente, sintomas de quem sentiu afeto, e afeto é tudo aquilo que afeta não é?

Se quiser compartilhar,  me mande quais foram,  "escuta-los- verei"  junto com você. 

E sobre mim, nem sei de mim e ao mesmo tempo sei, porque me acompanho sempre. Costumo distribuir sorrisos e face de quem anda bem... é mas fácil do que explicar sobre o que até de mim desconheço. Mas ando tentando descobrir e me ajudar!  Me apego à música, a sons de instrumentos, à lembranças e conversas com quem deseja me ver bem e a mim mesma... ando querendo me ver bem também.

Aqui, chove muito e me sinto meio egoísta por gostar da chuva. Você se lembra que quando eu nasci, choveu de arrancar árvores? A água sempre me acompanha, nasci nas águas de março fechando o verão (ótima música). 

Querido, mande notícias,  e desculpe a demora em responder sua carta. Se vale como defesa, eu já tinha respondido em pensamento. Tente não dormir tão tarde e se alimenta bem.

Um beijo com saudade e um abraço de quem não tem medo de mergulhar, já que conhece  alguém que carrega o mar no próprio começo. 

Sua, 

Tania.

(Resposta inspiradíssima de Isabela Lima)

I - Um beijo ondulante, um abraço afogante

Tania,

da janela da minha cozinha, onde estive lavando os pratos, encarei as paredes do meu quintal dos fundos, repleto de registros que pintei em um surto. São frases, letras de músicas, diálogos de filmes, entre outras referências que colacionei na mente sem sentir - certamente porque marcaram.

A verdade é que tenho tido receio de visitar esse espaço e especialmente de reler o que deixei escrito. Me parece o mesmo receio que sinto em mergulhar em mim às vezes. Você sabe, gosto de me manter no controle, minha rebeldia não é estrutural. E parece que alguns sentimentos desobedecem qualquer ordem, não é? Desestrutura, balança, derruba. O que vem com o luto é bem assim. Completamente insubordinado. E com um duplo luto então? Meu retrato. 

Não quero reler nada que escrevi agora, Tania, nem queria escrever sobre também, mas é que você me escreveu uma carta perguntando como eu estava e você é uma das poucas que me pergunta isso, porque a maioria já olha pra mim e supõe que estou bem. Então resolvi te contar a verdade. E a verdade é que eu nem sei. Ando oscilando, mas acho que o normal é mais esse do que o outro - o ideal. Oscilar como o movimento do oceano. Como o mar. Quem dera as tábuas de marés e solunares também me contassem como estarei amanhã. Minha vida por algo assim. Mas por hoje, tudo bem. 

E sobre você? Quero saber tudo. Pra me fazer feliz: nada menos que uma carta longa. Que me contes aventuras, desventuras e alguns segredos. E até sobre aquele momento em que esteve lavando os pratos. O que pensou? Por onde andou? Por quais caminhos foram tua mente? Consegues descrever? Podes me falar? Já me sinto curiosa, querida irmã. Por aí anda chovendo? Por aqui, as gotas caem sem parar e parecem querer lavar o nosso mundo. O que elas têm causado no teu também?

Um beijo oscilante, um abraço de afogar, 

Mar. 


quinta-feira, 2 de junho de 2022

A dona da noite não toca valsa

Minha vitrola é indomável, toca sozinha, juro, toca sozinha.

Ontem, pouco perto de meia noite, apaguei todas as luzes (como de costume), coloquei pouca roupa pra dormir (está quente) e acreditei (ando nessa fase) que tudo correria tranquilamente entre o cair da noite e o nascer do Sol. Estava tudo bem e calmo e de acordo com o roteiro que planejei uma semana antes (lua em virgem), mas minha vitrola não. Ela é o ponto fora da curva da minha casa que abrilhanta e harmoniza o que de outra forma pareceria descombinação. Ela é a dona da noite porque insiste em me fazer lembrar várias músicas que estavam esquecidas e que eu já gostei tanto que me levanto pra dançar todo vez que tocam.

Eu? Eu moro sozinha, tenho medos antigos, já me perguntei várias vezes sobre os poderes sobrenaturais que envolvem um objeto que funciona sem que o acionem, mas de tanto que prezo e quase amo a minha vitrola, decidi ignorar. Permito, deixo, danço, participo. Rezo para que o que quer que a afete tenha boa intenção, acredito que o quer é festa. Ontem, foi estranho porque não consegui deixá-la escolher a música. Girei o botão que maximiza o volume das notas, ajustei o grave, parti pra minha estante (invejável) de LPs antigos e puxei o "Disco Inferno" de The Trammps. Da minha parte, deixando de lado toda e qualquer parte que não me seja particular, escolhi o som da noite. Também sei me assombrar. 

Mal do século

Blancard alinhou os papéis mais uma vez na mesa. Ela iria chegar. 

Tinham marcado de 15h e ela estava atrasada 12 minutos e 37 segundos. Ela não iria chegar.

Blancard começou a tamborilar os dedos na mesa do escritório, mas a vontade era de roer, destruir, fazer sangrar as unhas com a ansiedade. Ela não iria chegar.

Inquieto de várias formas que eu não conseguiria descrever - movimentos internos - levantou-se da cadeira em um ímpeto e foi pra janela. Ela não iria chegar.

Ficar na janela amplificava a agonia e sabia que o café também, mas dirigiu-se à cafeteira e engoliu de uma vez um curto expresso. Não, não. Não iria chegar (!).

A verdade é que as lágrimas que o queimor na garganta fez descer pelos seus olhos e que confundiram-se e misturaram-se com as lágrimas que a agonia e decepção causada pelo terror titânico que a ansiedade, descomunalmente, o fizera criar e ingressar, colocaram-no em um ponto em que mal percebeu a sua chegada.

Ela ficou confusa.

Ele a enxergou de forma turva, por detrás das lágrimas. 


terça-feira, 24 de maio de 2022

Kierkegaard (editar)


Quando me deito na grama, me sinto bem.

O contato com a terra, com o desfile das coisas que acontecem ao meu redor, com as sensações, os cheiros, tudo que desperta meus sentidos, tudo que porventura despertará, me traz simplesmente pro que está ali.


Fecho os olho, deixo o sol bater ligeiramente, permito-lhe queimar com suavidade a minha pele, trazer calor pra minha alma e iluminar meus pensamentos.

Respiro, acalmo, sorrio, vivo. 

Escuto o bater das asas da borboleta que passa porque estou completamente aqui e aqui consigo notar a delicadeza de coisas que são sutilmente maravilhosas. Maravilhosamente sutis. E todas as cores que a tornam bela. 

Se eu piscasse, a perderia. 

Se eu piscasse, não adoraria ela. 


De coração mais que de olhos abertos, me deleito com o momento, com o instante das coisas. Com os sabores que despertam, os arrepios que me fazem sentir, o calor, o frio, as sensações no meu corpo, o tato, as possibilidades existentes em um gole de um café quente e delicioso, em abrir um livro que sempre quis ler, folhear cada página, tatear um objeto querido, ser invadida por uma música, abraçar alguém querido, seu cheiro, corpo, voz. Existência.


Boa amante que sou de toques certeiramente marcantes, amo essas marcas que deixam, impressões. Também gosto do risco, do traço, de começar uma aventura com o lápis, sem saber pra onde me leva e sem saber pra onde vai e, com susrpresa, dá forma ao nada. Criar pra amar. 

Construir. 

Pontes, prédios, casas, relações. 

Percorrer caminhos, deixar pegadas no chão.

Amar corpos, trejeitos, sorrisos, gestos e tudo o que me despertam e fazem sentir. 

Amar almas que transcendem a incorporeidade, despertando emoções vivas, tão vivas que conversam comigo agora. 

Me apaixonar por elas. 


quinta-feira, 19 de maio de 2022

Se eu pudesse escolher a foto,

As pessoas já estavam há muito tempo no enterro. O corpo dela já havia sido consumido completamente pelo fogo e eu imaginei que àquela hora já deveria estar descansando numa urna funerária. Estranho estar pensando isso agora. Estranho estar pensando. Estranho estar ali. 

Algumas pessoas me cumprimentaram no enterro, mas senti que a maioria se perguntava quem eu era. Um idosa simpática foi a única que perguntou meu nome e se aproximou achando que eu também merecia um abraço. Estranho estarem se perguntando se eu merecia o abraço. Estranho não ter recebido mais nenhum.

Enquanto as pessoas falavam e dialogavam, alguma fotos, lindas fotos, passeavam por um slide. Todas elas tentando demonstrar sua vivacidade e energia, mas nenhuma delas fazendo realmente jus à isso. À ela. Ou realmente espelhando o que de verdade ninguém via. Estranho saber que aquelas seriam suas últimas fotos. Estranho não ter participado da seleção. Estranho não terem me pedido a foto de nós duas, abraçadas e sorrindo, que estava na cabeceira da cama. Estranho que fosse a minha favorita e possivelmente a dela. Estranho ninguém saber disso. Estranho não estar na tela.

Eu me perguntava se me deixariam tocar na urna porque ninguém ali sabia onde ela queria que fossem jogadas as cinzas. Estranho que possivelmente não me deixariam atender seu último desejo. Estranho que outras mãos e outras pessoas que não a entendessem e amassem como eu provavelmente a devolvessem ao vento fora da colina onde fizemos amor pela primeira vez e que ela me pediu em namoro, enquanto me beijava com gosto de uva nos lábios. Estranho que esteja contendo minhas lágrimas de agora e desde o começo por puro preconceito. Como contivemos nossa vontade de andar de mãos dadas. Estranho que tivéssemos passado nosso tempo respeitando o preconceito deles. Estranho o preconceito. Estranho eles.

Eu queria gritar pra todos o que me atormentava. Eu não sabia ao certo, mas os sinais apontavam uma verdade cruel. Uma luta perdida e a culpa que carregava por nao ter percebido. Enganosamente, achei que estava tudo bem no momento em que ela me abraçou pela última vez com os olhos marejando e disse que sentiria saudades. Para mim, seria apenas uma viagem de carro a trabalho, a terapia estava evoluindo, os remédios controlados já estavam sendo retirados pelo médico, a última tentativa de suicídio já não acontecia há dois anos e os psiquiatras falavam em alta. Estranho que todos ali achassem que havia sido um acidente. Não havia nada que apontasse que ela precisou desviar de algum obstáculo na estrada. Tudo indicava que o que ela não conseguiu foi se esquivar do desespero de outros obstáculos. Dos que a impediram de viver, de sentir, de ser. Os obstáculos deles.  

Estranho que estejam chorando agora por ela, quando foram eles que a mataram. E estranho que eu seja a única daqui proibida de chorar. 

terça-feira, 17 de maio de 2022

O que brilha mais que esmeralda?

Francesca dispensou a auxiliar e, diante do espelho, iniciou um ritual próprio e particular. 

Assim, soltou primeiramente os cabelos que estavam presos na faixa e deixou que eles caíssem livres e soltos pelas costas, pelos ombros, pelo busto. Sorriu. Tinha muito cabelo.

Depois, ainda com um meio sorriso no rosto, começou a desabotoar os botões do corpete nas costas. Tentou, inutilmente, desempenhar a tarefa com charme e graça. Sorriu de novo. Impossível. O corpete, frouxo, foi retirado por cima da cabeça ao som de novas risadas.

Em seguida, teve a inconsequente ideia de despir a longa saia, a meia de cetim e a delicada peça íntima de uma vez. Cambaleou algumas vezes, quase caiu, resolveu que deveria se sentar e rendeu-se ao riso novamente, ao mesmo tempo em que as três peças desciam até o ponto em que descansassem completamente aos seus pés, emaranhadas e juntas, libertando-a quase totalmente de suas vestimentas. Quase. 

Ainda com a sombra do último sorriso no rosto, voltou ao espelho. Restava o brinco. Uma peça linda, de esmeralda, um presente amoroso que brilhava e cintilava, mesmo que a baixa luminosidade das poucas velas que preferia acender à noite tornassem o feitio duvidoso, o que a fez quase acreditar que o ilusionista havia enfeitiçado não o objeto, mas seus olhos. 

Não tirou o brinco. 

Mergulhada em seu próprio encanto, Francesca se dirigiu à janela e abriu as portinholas. Recebeu o frio da noite em cada recanto do seu corpo e sussurrou contente: "obrigada". 

(No canto, se a vissem, saberiam que uma jóia não causa esse efeito; saberiam se fossem sábios). 


sexta-feira, 13 de maio de 2022

Rosa e teus cabelos de campos de trigo


É uma rosa, apenas uma rosa, mais uma rosa, mas também a rosa, a única rosa.

Ela não estará ali, no campo, no roseiral adiante, no meio das outras rosas do jardim.


Também não se esconde, não se diferencia, mas os olhos que a enxergam sempre notarão nela seus tons especiais.


Desse jeito assim, é preciosa, singular, a rosa.

Tornamo-nos amigos, cuidamos um do outro, um espinho me feriu, preferi me retirar: tive medo de ser ferido de novo.


Viajei, estou na Terra, um aviador me desenhou uma caixa, guardei nela um carneiro, tenho uma velha preocupação: os baobás do meu planeta precisam ser podados e eu sinto muito. Não quero vê-los cortados, exterminados, dominados, mas não podá-los significa pôr tudo em risco. 


Ainda aqui, conheci uma raposa e dialoguei com uma serpente. A raposa me trouxe sabedoria, verdades e saudades. Pediu que a cativasse, mas foi ela quem me cativou. Disse que queria ver meus cabelos refletidos nos campos de trigo e eu achei lindo. Me apaixonei. Com poesia, também me fez perceber que não encontraria a minha rosa no meio de outras rosas, por mais semelhantes que pudessem parecer. Já a serpente me rodeou com ameaças de morte. Cruéis verdades. Chorei o inevitável, consegui não morrer, decidi voltar. 


Voltei, sim. Voltei. De fato, não morri. Apenas voltei. Havia outros planetas, havia um universo, estrelas lindas que queria visitar, raposas sábias pra conhecer e por quem me apaixonar, o infinito a ser destino. Voltei. Estou a caminho! Terra, chão, um cheiro de grama conhecido e a rosa. 

Que linda. 

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Como desembalar o presente?

Animadamente, ajeitou o cabelo de lado e notou que eles caíam bem mais bonito naquele dia frio.

Havia planos, construções, projetos em andamentos - se permitia, enfim, enfim!

Havia delícias doces ainda oriundas da páscoa, presentes que não eram ou eram chocolates (não curte muito puro porém adora harmonizá-los), presentes carinhosos, ainda embalados (o melhor é a surpresa de nao saber o que sao, o ritual de desembalá-los ou  o ato de receber não importando o que sejam?). Havia um final de semana inteiro pela frente e a expectativa de preenchê-lo bem.

Sim, tinha esse dia frio e a ausência do sol da manhã, as nuvens - densas e escuras - escondendo os melhores raios e anunciando chuva. Talvez temporais, talvez pequenas gotículas pra aguar o jardim, talvez apenas o que precisava pra lavar um pouquinho a alma com o clima, barulho, quem sabe dança? Tudo em pausa, em suspensão, alimentando expectativas, particularmente boas nesse momento, promessas especiais.

Os cabelo lindos, a pele brilhante e o coração cheio no espelho. Na mente, o pensamento de que o presente é dos presentes que se deve desfrutar com carinho e energia. Desembalá-lo docemente, alimentado de expectativas. E que sejam surpresas de chuva. E que venham supresas de sol. Apenas venham. 


Obs: texto escrito por uma boa recebedora de presente, mas muito melhor presenteadora. 

domingo, 3 de abril de 2022

Gratidão à Lygia


“Me leia enquanto estou quente”.

Não deixe solitárias minhas linhas incendiárias.

Não abandone o meu texto nos momentos de combustão.

Por favor, permita-me as alterações de alguns sentidos enquanto escrevo.

Aceite o vulcão, aceite a explosão, aceite-me inflamada.

Abranda, afaga, com olhos afetuosos as frases incivilizadas.

Compreende, sim, entende-me insolente, impertinente, deselegante, pouco educada.

Mulher. 

Humana.

Ama também e benevolente cada palavra inconsequente, descontrolada. 

Permite licença ao meu ardor, à minha paixão, à vontade de existir associada à confusão da existência. 


(Ao escrever, sinto as emoções transformando-se em palavras, lanço perguntas, formulo respostas, novos questionamentos, toco minha alma em pontos delicados, me conheço, me desconheço, faço planos, desfaço, sem pretensões, mas esperançosamente, espero tocar sentimentos 

além dos meus, imagino leitores, espero que gostem, embora duvido que entendam). 


Me acompanha, me folheia, até o fim do texto, 

não precisa adorá-lo, nem compreende-lo, nem minimamente gostar do que escrevo,

mas, por favor, “me leia enquanto estou quente”.


(Humilde homenagem a Lygia Fagundes Telles)


quarta-feira, 30 de março de 2022

Ela achava que tudo melhorava em certo ponto. Sim. Sentia melhoras nela. Apesar do novo tapa, apesar de ter sido surpreendida outra vez com notícias que daria tudo pra não escutar - embora tivesse esperança que de ruim se tornariam boas, notava que as feridas lentamente iam se transformando em cicatrizes.

É que se reencontrava no meio da tempestade, reconhecia. Naquele ponto em que continuava percebendo que passava conforto pras pessoas, afago. Naquele ponto em que carinhosamente e sinceramente e profundamente cedia parte dela mesma, sem ressalvas. Naquele ponto em que, mesmo em busca da sua, permanecia intensamente apaixonada por almas. E a respeito disso em específico, sabia: não iria mudar. 

(“‘Beija-nos silenciosamente na fronte. Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijamos senão por um diferença na alma.)