quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Chiaro

As coisas mudam muito rápido se você parar para perceber.

Mas eu não estou interessada.
Não nas grandes mudanças, na aceleração dos momentos, na dilaceração dos segundos, nos exorbitantes eventos do mundo, no turbilhão, monumentos, explosões nem lampejos. 
Não.
Eu quero dias comuns.
Quero acordar e ir dormir sentindo a saúde dos meus. 
Quero a minha filha feliz, rodopiando, sem queixas, sem reclamações. 
Quero seu coraçãozinho forte e todo o corpinho crescendo, crescente, desabrochando e ficando gigante. 
Quero um café, um livro, um bom filme para assistir.
E o teu abraço de bom dia. 
(…)

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Outro encontro na Sertanense (editar)

Eu me lembro, embora não com precisão.

Quando fecho os olhos, quase sinto os paralelepípedos antigos encostando no solado do calçado, os odores desagradáveis mas afetivamente conhecidos, vislumbro as cores de tintas desbotadas dos edifícios, a beleza consumida das ruas projetadas para nunca serem abandonadas.

Eu vejo as lojas passando à minha direita e à minha esquerda, farmácias, padarias, lanchonetes seculares, uma ponte de ferro atrás unindo um lado ao outro da cidade, os barulhos dos passos atravessando da Rua Nova à Imperatriz, aquela parede com poesia de Ariano pichada e com cheiro de mijo que poderia evitar passar perto, mas que era irresistível.

Vejo as igrejas nas ruas, as pequenas praças de fontes vazias, os pombos no alto, no céu azul ensolarado, a quantidade enorme de transeuntes, um mar gigante de pessoas e indigentes transmutando papelão em casas. 

E eu me lembro, embora não com precisão, das tantas  vezes em que caminhei, senti e vivi o centro da cidade. Do cheiro dos sebos, dos garimpos animadores, do brilho do vidro e pulseiras dos relógios enfileirados nos camelôs, dos ônibus passando com menos cuidado, menos conforto e mais passageiros do que deveriam. 

E entre rostos e buzinas de carros, também me vejo, ansiosa, em frente ao cinema São Luís, tomando todas as direções  que me levam ao teu encontro. Cabelo longo, quase cobrindo a mochila das costas, inconsequentemente de salto e de preto. Invariavelmente de preto

Da nossa família fosse a única que resolveu morar longe, saindo de Olinda para Boa Viagem. Da minha família fosse aquela que me acolheu e adotou quando minha mãe quase morreu na mesa de parto. Da minha família, sempre lembro que teus olhos eram os mais compreensivos e o teu apoio incondicional. 

E é claro que os caminhos da cidade continuam me levando  ao teu encontro, mesmo que a definitividade da morte não faça disso possível, mesmo que seja com gosto de lágrimas e um amargor de saudade que eu te vejo me esperando, em frente à lanchonete Sertanense da Rua Nova, para dividirmos um lanche, um misto, uma cartola e uma coca gelada, sentadas no balcão.  


domingo, 5 de novembro de 2023

Uma saudade chamada xadrez (editar e melhorar o final pra sábado)


Eu me lembro daquela mesa de xadrez, naquele encontro de outra hora em que, vivo, você me ensinou os primeiros movimentos.

E eu me lembro de não ter apreendido sequer uma norma que conduz o jogo, mas de ter achado fascinante e de continuar achando fascinante mesmo agora.


E eu me lembro que era noite, uma viagem, uma cidade, Cidade das Flores, em que impensadamente você nos carregou pra conhecer.


Eu lembro da longa distância de lá até nossa casa, do medo nas curvas da Serra das Russas, do play do k7 no stereo do carro, de revezarmos Xuxa e Roberto Carlos, das cruzes depositadas nas beiras das estradas. 


Eu me lembro de ter sido embalada pela música, de cada pose pras fotos, de ter comido pizza à noite, de termos dormido todos no mesmo quarto e de um parque de nome estrangeiro, de um arquiteto holandês.


Da praça cheia de flores, dos canteiros enfeitando a avenida, das arvores altas, pinheiros tocando as nuvens, da saudade na partida e de ter torcido pra voltar.


Hoje, vivendo na cidade que me encantara e revisitando o local em que quase aprendi xadrez, não encontrei a mesa no hall de recepção da entrada.

Percorri os corretores, revivendo doces momentos fantasmas, as fotos antigas nos quadros emoldurando tempos que não voltam mais. Pisos decorados, bancos vazios, parques infantis sem gritos, janelas fechadas nas casas, um salão de jogos empoeirado no final de tudo. 

E a mesa. 

Gavetas ao redor, bispos, reis, rainhas, cavalos, torres e sorrisos fantasmas a esperar um lance. 

Desoladoramente vazia. 





quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Praia espacial (editar)

Depois de percorrer caminhos e distâncias estelares, ela finalmente pousa em um pequeno planeta.

Após horas intermináveis de verificação de tudo que envolve sobrevivência, pisa, com cautela, no que parece uma praia.


A paisagem litorânea e abandonada, as ondas batendo nas pedras e o som incomparável do oceano, incentivam-lhe a retirar o encorpado capacete.


Seus cabelos, pesados e desacostumados a movimentos de liberdade, dançam à primeira rajada de vento.


A astronauta inspira, enche os pulmões, prepara-se. 

No peito, o primeiro ar respirável que encontrou em suas andanças pelo espaço. Permite que ele more em seu corpo, como um reforço, um suplemento, um elixir, um amparo.

Em seguida, liberta.

As ausências, as saudades, os sonhos que deixou pra trás. 

Liberta a culpa, os desalentos, os arrependimentos, o pesar. Os caminhos que não seguiu, a vida que não permitiu, os momentos que não teve. E aqueles que nunca terá. 


E a cada entrada e saída do ar no corpo, em cada movimento de respiração e inspiração, naquele ciclo natural e fisiológico, nas idas e vindas, na permissão e negação, na chegada e na partida, nos caminhos e nos desvios, ela revive sua trajetória, assimila suas escolhas, reverencia com respeito as direções que a trouxera ali, olha ao seu redor e no meio do caminho entre um pequeno sorriso e uma diminuta lágrima, compreende. 


A astronauta enxuga os olhos e caminha até o oceano. 

Retira no que parece um bolso em seu cinzento traje um objeto longilíneo que deposita no mar.

Enquanto espera, fotografa na mente a paisagem e o movimento das ondas daquela pequena praia do espaço. Com um bipe, o objeto retorna. Há uma mensagem piscando na tela:


“Potencialmente mergulhável. Pode entrar”. 

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Capítulo?

Ele estava profundamente calado, sentado, olhando para a paisagem do lado direito de sua janela.

Da minha parte também não se ouvia som algum. Dirigia, sem qualquer rumo, levando-nos para lugar nenhum e todos ao mesmo tempo. 

Bem baixinho, no volume dezessete, tocava minha playlist de clássicos de Blues. Nas idas e vindas das notas, virava o carro para direções inusitadas, nos permitindo não ter destino e enveredando por uma estrada de barro que surgia à esquerda.

Havia o silêncio das nossas falas e as falas que existiam no nosso silêncio sinergindo com a música negra e triste que ecoava muito além do carro.

Havia um caminho desconhecido à frente, inexporado, descampado, tortuoso, duro. 

E o sol, laranja, avisando que deveriam ser quatro da tarde. Minha hora preferida. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Uma compreensão malteficada

Ontem à tarde, convidei-os para visitar as paredes que pintei durante aquele surto, assustada com o que poderiam pensar, mas também esperançosa que compreendessem.

Por muito tempo esperei encontrar pessoas com almas livres de julgamentos, amigos com quem eu pudesse compartilhar segredos, fraquezas, momentos incompreensíveis até para mim.

Por muito tempo desejei sentar com eles, contemplar e dividir aquele momento. Tentar encontrar em seus olhos explicações ou simplesmente alento. 

Por muito tempo me pensei distante dessas pessoas, por muito tempo me senti desconectada de gente. 

Hoje eu sinto que posso ou simplesmente quero poder?

Seriam eles as pessoas que participariam do jogo que elaborei inconsequentemente na minha cabeça e que por poucos minutos achei que seria divertido para alguém além de mim?

Seriam eles os que sentariam comigo e se interessariam pelo que realmente acontece aqui dentro, que compreenderiam minimamente, que adivinhariam ou tentariam adivinhar de onde vem as frases, as referências, as músicas, os lugares?

Poderia eu contar-lhes que escrevi citações de outros por não conseguir elaborar sequer um pensamento próprio e que automatizei tantas coisas naqueles dias que apenas recordo de dormir e acordar? Que não lembro de onde vieram as frases, as cores que escolhi para escrevê-las na parede, as tintas, os pincéis, o nexo, o sentido, que eu não sei jogar meu próprio jogo? 

Eles são meus amigos ou se mostram dispostos, eu sinto. Eu, por outro lado, sigo bambeando nos sentimentos que sempre bambeio quando se trata de transparecer quem sou e calo. Calo bastante. 

Eu já vivi verdadeiramente e completamente momentos em que pude simplesmente ser e compartilhei os sentimentos que vinham, mesmo que não compreendesse a complexidade e a profundidade da maioria. 

Hoje, a maturidade me fez atingir o entendimento da existência por trás de grande parte deles, embora alguns permeiem para sempre na obscuridade, sendo o que são: indeléveis e inomináveis. 

Sobre esses, consegui certa libertação na aceitação: recepcioná-los quando chegam, não lutar contra, saber que em alguns dias aparecerão mais despertos, outros mais adormecidos e que são tão intrinsicamente parte de mim que combatê-los foi, é e permanecerá sendo inútil. Inútil. 

Sobre os demais, pergunto-me agora se posso confiar neles para mostrar cada parte da parede, para convidar pro jogo, para esperar que adivinhem alguma das frases ou que simplesmente parem, sentem comigo no chão e contemplem tudo em silêncio. 

Ou materializem uma latinha de cerveja 

E o barulho da lata sendo aberta e do líquido despejado e dividido em nossos copos seja o único som ecoando no final da tarde: uma compreensão malteficada descendo pela garganta.

Confortavelmente.


terça-feira, 12 de setembro de 2023

Descontato necessário

"Não preciso de pessoas. A maioria delas não me preenche, esvazia".

Em que pese não gostar de Bukowski, reconhecia que algumas frases tinham o efeito de, incomodamente, tatuar na mente suas impressões. 

Ela gostava de pessoas. Conhecê-las, conversar com elas. Saber das minúncias que nao sao mostradas, os detalhes, seus detalhes interiores. 

No entanto, ela precisava recarregar a bateria para socializar. 

Era bom, mas cansativo. Era intenso e sugava-lhe um pouco já que entregava tanto nos contatos, nos encontros,  que “esvaziava”.

Algumas, incomodamente, queriam saber dela mais do que desejava contar. Outras, apenas compartilhavam demais, sem que esperasse por isso. Existiam aquelas que pediam-lhe pra guardar segredos já no primeiro encontro. Muitas supunham que a conheciam bem e mal faziam perguntas. Ainda existiam as que eram metralhadoras de palavras e não paravam nem pra respirar. Tinha também as que de forma maliciosa apareciam com segundas, terceiras e quartas intenções.

Raras pessoas transmitiam o conforto da presença com o silêncio. Ou com frases pontuais. Ou com uma conversa. 

Ela gostava de pessoas, mas precisava de um tempo afastada delas. 

Não de você.

Da maioria. 

sábado, 2 de setembro de 2023

Clube dos 10%


É que ela era fenomenal de uma maneira que o fazia querer acreditar em encontros especiais de todas as formas que não faziam sentido.
O que sobrava pra uma pessoa cética quando, de repente, deparava-se com o excepcional?

- Eu espero que a chuva dê uma trégua na tarde de hoje.
- Impossível, a previsão do tempo diz que continua assim até amanhã.
- Você realmente consulta isso, não é?
- Atualmente a probabilidade de acerto é de 90%.
- O que não garante certeza.
- Porque você é do clube dos 10%.
- Sim, eu sou do clube dos 10%.

Ela era realmente do clube dos 10%. Havia tanta coisa incomum nela, como aquele diálogo, que ele nunca sabia o que esperar. Não é como se fosse, no momento seguinte, colocar-se em loucuras e enrascadas. Era mais como se estivesse desafiando de uma forma leve e cuidadosa, estigmas e convenções.

- Você já teve a sensação que não se encaixa em nenhum lugar?
- Sim, continuamente.
- Você faz ou pensa em fazer algo pra mudar isso?
- Na verdade, acho impossível que exista algo que possa mudar a sensação.
- Eu também. E não vou tentar.
- Eu também não.

Mesmo que fossem de clubes opostos, que os ângulos em que olhassem coisas ao redor divergissem no mais profundo aspecto, tentavam de forma contínua encontrar conexões e detalhes que os permitissem estar juntos.

E foi assim que funcionou. 
E é assim que funciona. 

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

A saia inusável (editar)

Roupas são apenas roupas, ou não o são, depende.

Algumas, de fato, servem apenas como vestimenta, invólucro, indumentária social. 

Outras, determinam classe, posições, estilos, atitudes, temporalidade. 

Mas esse texto não é sobre roupas em específico, apesar das aparências.

É sobre saudade. 

Da saudade que reside numa saia que nunca foi usada. Dobrada, cuidadosamente, junto com outras saias que tiro e coloco no corpo sem pensar, essa saia, branca e linda, adornada com flores azuis e rosas, que me veste perfeitamente e que sempre coube em mim, guarda tanta coisa nela que me trouxe até esse texto. 

Sobre uma saia inusável. 

Poderia aqui descrever algumas emoções que sinto ao tocar nela, ao simplesmente vê-la quando abro a porta do guarda-roupa, poderia exprimir - tentar exprimir - metade dos sentimentos, mas há algo que eu não alcançarei nunca nessa explicação se não começar pela história de como foi parar nas minhas mãos.

Era uma noite de natal de uma família grande e unida. Juntos, todos trocavam os presentes de amigo secreto. Eu recebi o meu - a saia - das mãos do meu primo. No último natal em que passamos juntos porque em fevereiro do ano seguinte ele partia prematuramente desse mundo com 18 anos. 

É possível entender como um objeto representa dor, amor e saudade ao mesmo tempo depois do que foi contado? É possível entender o fato de ser precioso e único e eternamente adorado por mim, no entanto inusável? 

É possível que coisas materiais, apesar de serem apenas conglomerados de partículas sem vida, revivam pessoas, sorrisos, histórias vividas e histórias dolorosamente interrompidas na linha do tempo a um simples relance do olhar?

Eu conto os sorrisos e momentos que compartilhei com meu primo ao visualizar a saia. 

E lamento os sorrisos e momentos que não compartilhamos ao vê-la também.

Roupas não são apenas roupas.

Vestimentas, invólucros, indumentárias sociais. 

Não nesse texto. 

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

A matéria e o sonho

E eu teria sonhos se me cortassem as conquistas?

Sendo como sou, diria que não.

Mas há algo no âmago, nesse aperto no fundo do peito, nesse gelado de agora na barriga, na profusão de coisas circulando pelo corpo até a ponta dos dedos que até me permitiria pensar o contrário, tendo em vista o matutino questionamento. 

É que é preciso regar o jardim pra ver as flores nascendo.

É preciso ser terra pra se permitir ser jardim.

É preciso esperança para irrigar desejos. 

É preciso sabedoria pra diferir anseios de devaneios.

E é preciso conquistar para saber o que esperar.

Mas nao é preciso coerência e lógica na elaboração de certas respostas. 

Nem precisa respostas.

O fascinante no tudo é continuar perguntando. 


“Uma pessoa pode começar a remodelar a paisagem com apenas uma flor, capitão”.

Plante. 


quinta-feira, 27 de julho de 2023

Reinvidicação (editar pro shot)


“Se você me quer, me faça sentir isso”.

Não me entregue lacunas, entrelinhas ou necessidades de interpretações. 

Não me faça duvidar, não me faça nem por um minuto duvidar porque no instante seguinte já não estarei aqui.


Se você me quer, não deixa no abraço, no olhar, no sorriso. Me queira com o corpo, mas com todo o corpo. Completo.

Coração, alma e mente,

não pela metade,

nunca pela metade,

aliás, nunca seja metade para ninguém.


Se você me quer, vem pra perto, se aproxima.

Extermina, deteriora, destrói esse espaço em que ainda somos dois.

E vem comigo, mas não para mim, vem por você. Pelo que é indubitável em você.

Insubordinável em você. Certo, inteiro.


Se você me quer, me faça sentir isso! Sim, me faça desejar que cada história que deixamos espalhadas, sejam recolhidas e vividas. Intensamente. Que não nasçam, morram, morem no espaço em que não somos, não permitimos, não deixamos. Que nem nasçam! 
Que nem sequer consigam nascer.


Ah, se voce me quer, me faça simplesmente sentir isso. Sem arestas. Sem pretextos.

Não me deixa sair sem saber.

Não me deixa partir sem saber.




segunda-feira, 17 de julho de 2023

Ficção científica (editar)


Finalmente acordou de um longo sono. Seus olhos demoraram a acostumar com a claridade, especialmente porque a parede fina da caixa de vidro onde estava deitada, não escondia o teto excepcionalmente branco daquele lugar.

A caixa moldava-lhe de uma forma que roubava a maioria dos movimentos, mas permitia que abrisse e fechasse as mãos, o único gesto de protesto concedido ao corpo. Fechou-a de uma forma que chegaria a doer se os plugues conectados ao cérebro não lhe anestesiassem emoções ou sentimentos que a dignificasse viva. Mas havia as lágrimas. Não conseguiram refreá-las. As lágrimas escorriam livremente, mesmo com o coração e o corpo todo transmutado em máquina. As lágrimas humanificavam os metais, os órgãos revestidos, os comandos que deveria obedecer e obedecia, mas vindas de algum lugar inatingível aos controles, fazia-lhe participante ativa de um exército robótico que imprevisivelmente chorava. 

O coração, a carne, as decisões, os pensamentos, os sentimentos, ligados e desligados à revelia. Mas no incômodo que esvai o que precisa ser chorado, caem lágrimas rebeldes e ingovernáveis. Até de máquinas. 

domingo, 9 de julho de 2023

Onde moram essas letras?

Comecei três textos, não terminei nenhum. Há boas frases em cada um, mas nenhuma profundidade. Como sempre, nas pausas, começo um parágrafo esperando que o seguinte me traga algo. Uma reflexão, uma lembrança, uma ideia minimamente digna de transformar-se em estória. 

No entanto, como tantas outras vezes, vou pegando-me naquela necessidade de continuar, teimosamente, sem qualquer inspiração ou motivo a desenvolver um novo texto. Surgido e nascido puramente do que é inominável pra mim, mas que existe, indissociável da minha pessoa. 

Numa provocação recente, um autor, me fez refletir que o que diferencia um artista de um aventureiro na arte é o fato de não conseguir parar. De forma natural, isso me auxiliou a enxergar a escrita como uma protagonista real na minha vida, eis que tão essencial nas pausas, quanto nas correrias.

Há um enlace real e profundo nessa dinâmica comigo mesma que nasce e morre aqui. Um ciclo contínuo que acompanha-me em fases e fases e momentos e momentos e que mora no sempre. 

Que na vida, não me faltem pulmões pra respirar e consciência pra transcrever o que respiro e movimentos que nunca me impeçam letras. 

Que me falte inspiração, mas nunca vontade. É na vontade que reside boa parte de tudo que é assinado por mim. É da vontade que me saem essas letras. 

Quando a maré tá alta em Recife, há um perigo escondido em cada esquina iniciado com a primeira gota que cai do céu.

Um perigo que raramente atinge altas torres, bairros privilegiados, pessoas de sorte (?) que podem enclausurar-se e esperar que o tempo melhore, os que, do alto, consultam previsão do tempo para fazer programação. 

...

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Protagonista

Já cansei de apresentar-me em um palco para um teatro vazio ou para um público que nunca compreendeu meus vinte anos de teatro. Também vivenciei espetáculos cheios e vivi aplausos, ainda os ouço, ainda acenam para mim. Enquanto retiro a maquiagem e os cílios postiços que ocultam a minha atual ausência de pelos, continuo me sentindo o Rei Lear da Grã Bretanha, orgulhoso por ter sido escolhido a protagonizar uma peça shakespeariana, quase ignorando o fato que pela primeira vez interpretei um idoso. 

Tinha 24 anos quando pisei no palco pela primeira vez. Tenho 44 anos e talvez esteja pisando uma última. Embora dedique-me aos tratamentos com afinco, acredite na ciência dos homens e tenha meus acordos com Deus, há um limite entre querer e atingir uma coisa. Então, aos 44, pálido e doente, passo bem por um idoso rei inglês condenado à morte. E vou caminhando seus passos em cada quadro através da minha atuação e vivendo em um curto espaço uma vida que apenas ensaia para o  suspiro final. Tão determinante como o término de uma peça, o abaixar das luzes e o fechar das cortinas.

A verdade é que morri tantas vezes no palco e me entreguei genuinamente a todas as mortes que vivi, que a notícia que paira, ronda e espreita meus dias, não me é novidade. O próprio tratamento, as dores, já experimentei na pele com outro nome como ator. Poucas coisas me surpreenderiam, entenda. Poucas coisas. Estive em muitos começos e em muitos finais. Estou sempre esperando o momento em que as primeiras luzes me avisam que é hora de entrar no palco e também aquele em que as últimas me intimam a sair. 

sexta-feira, 16 de junho de 2023

 Talvez não funcione nessas páginas.

Talvez eu não consiga dimensionar a agonia da semana que passou.

Do trabalho suado, corrido, apressado, preso nas entraves do judiciário.

Talvez eu não consiga exprimir em letrinhas a angústia. O caminho beirando a inutilidade do objeto que protelo, protelo e protelo, mas bate e volta numa parede impenetrável.

Na robotização de servidores, na lista infindável de coisas a serem atendidas e resolvidas antes que uma decisão envolvendo vida e morte seja tomada. 

Antes que o suspiro final de quem espera por ela diga que a luta foi em vão.

Era só uma curatela provisória, um respiro para pagar as contas de quem encontra-se inutilizado para fazê-lo. Um alento para que, em paz, os filhos da doente terminal pudessem chorar as lágrimas sem outras preocupações. Eu não recebi nada por isso, o meu pagamento seria dizer que estava tudo certo, ajudar de alguma forma num dor já  tão latente, tão pungente. 

Como, justiça, não tratar como urgente o que é urgente?

Uma movimento aqui, um movimento ali, horários, exigências, custas, comprovantes de pobreza, IR de três anos seguidos, consultas, consultas, consultas, pilhas intermináveis que crescem e adiam e alimentam a sensação de injustiça.

Como advogada eu choro. Como amiga também. Como quem teve tantas vezes dizer que ainda não conseguiu.

É difícil aposentar uma cliente e vê-la partir sem sossego. É difícil demais a sensação de algumas vezes não conseguir atingir.

Expectativas, sentenças favoráveis, decisões urgentes. O tipo de "não" sempre difícil compartilhar.

Nunca me acostumo.

sábado, 10 de junho de 2023

Amanheci lendo Ascenso (editar)

Quando a tempestade passa, ainda estou bambeada, ainda estou enjoada, ainda estou profundamente abalada, não pelos raios, mas pela minha indiferença ao quase ser tocada por eles.

As roupas, rasgadas, os farrapos que mal cobrem o corpo, aconpanham-me em um pequeno barco direcionado ao Marco Zero.

Eu respiro o ar conhecido, é noite, há fantasmas no ar, há contos de assombrações que me contaram poetas da noite.

Eu mesma, uma aparição vindo sabe-se-lá de onde, sou uma paisagem assombrada, branca como a lua, refletindo as últimas luzes quase apagadas da cidade. 

Há uma alvorada atrás de mim, eu sinto mais do que vejo. Ela empurra o barco e qualquer outro meio que me conduz. Meu próprio corpo, meus pés, dos iniciais aos últimos passos, acalorando a pele de arrepios constantes e não permitindo que o frio permaneça aqui. 

Os primeiros raios do dia, esses sim, alumiam minha visão, avermelhando, alaranjando, amarelando as construções queridas da cidade, os espaços que me abraçam mesmo quando não estou por perto, as saudades impregnadas nas paredes do tempo que passa, tão rápido, tão cortante, tão mordaz. Velozmente acelerando a vida e deixando coisas e coisas e coisas que não atingi a serem feitas, mas construindo coisas e coisas e coisas que nunca imaginei-me capaz de fazer. 


terça-feira, 6 de junho de 2023

Meia noite e meio dia


Em alguns momentos a sensaçao é que você está parado, estancado ou submerso em um oceano de águas escuras.
E poderia faltar ar mas não incomoda. Estar sozinho e afogado é uma sensação tão familiar, tão natural, tão sua. 
Da mesma forma que a sensação vem, ela vai. E você a devolve sabendo que despertence de você tanto quanto pertence. 
Da mesma forma que chega, ela parte. E você se despede aproveitando os caminhos claros, livres dela, embora certa do reencontro, dos cruzamentos inevitáveis com essa outra parte, também você.
Já temi os mergulhos, já ansiei submergir antes do tempo, tentando respirar e me afogando mais ainda.
Hoje, fecho os olhos e percebo na escuridão formas que não parecem estar ali e não estarão se me recusar a vê-las.
Hoje, entendo que minha alma precisa de meia noite tanto quanto de meio dia.
Hoje, faço esse texto num bloco de notas, registro no ambiente que me sinto acolhida e volto depois de um tempo, pronta pra lê-lo. Ansiando que cada ponto, por mais distante do ideal, seja verdadeiro

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Tentativa de roteiro de amor para uma história de assombração. (Editar)

(Início de roteiro introduzido em um conto anterior. A atmosfera e o nome da personagem principal descaradamente inspirado no Corvo de Edgar Allan Poe. 

Feriado. Frio. Muito frio. No entanto, o sol que entra pelas frestas da cortina, denuncia um dia lindo. Florido. Típica primavera inglesa. A viúva, sozinha na casa, olha pela cortina entreaberta. Rosto inexpressivo. Parece não sentir vida. Mais morta que o marido morto que a chama pelo nome agora:)

- Lenore?

 - Marcos, continuas semelhante embora transparente.

- Lenore, tanto tempo e essa conversa?

- Estou com frio, bem sabes que não consigo pensar bem nessa época do ano. E parece que você deixou o ambiente ainda mais gelado, querido.

- É uma tarde linda, Lenore, não reclame. Quis escolher esse dia para aparecer-lhe pois há de ser o mais bonito do ano. 

- É o que dizem de onde tu vens?

- Sim, percorremos todo o calendário.

- Não teremos pois um ano promissor, querido.

- Lenore... não mereço um abraço?

Ela aproximou-se. Passos lentos, coração tão frio quanto o tempo frio. 

- Não sou mais a mesma, querido.

- É claro que não, amor. E disso eu já sabia. 

Ele abriu os braços e ela permitiu-se ser abraçada por ele.

- Pensei ter ouvido tua risada ontem à noite.

- Talvez estejas sendo assombrada por outro espectro, amor. Eu só tenho o dia de hoje.

- Eu tinha esperanças que fosse você e ao mesmo tempo me recusei a acreditar porque sempre dói saber que não. Como agora.

- Agora estou aqui.

- Como vou saber se é verdade?

- Querida, não posso ajudá-la nisso, mas posso te dizer que deixei a melhor parte de mim em você. O meu próprio coração vivo mora nos dias que compartilhamos nesse mundo.

- Lembranças...

- Partir dói tanto quanto ficar, amor. O que sempre me ajudou a superar nossa forçosa separação foi saber que continuaria vivo nessas lembranças. É minha única forma de viver nesse mundo agora.

- Eu me recuso a ficar recordando, você sabe, não sabe?

- Sei e por isso, talvez, eu esteja morrendo de verdade - falou baixo evitando que ela escutasse.

- E eu? Quanto tempo ainda tenho, querido? - Funcionou.

- Não está nos livros, amor.

- Pensei que tudo haveria de estar escrito.

- Algumas coisas. Épocas do ano, temperaturas, alguns fatos da natureza. Nada sobre pessoas.

- Não estamos nos livros?

- Estamos, amor. Mas escrevemos nossas histórias dia após dia. E eu não estou gostando de ler o que andas escrevendo na sua. Por isso vim.

- Ah, e eu achando que foi por saudade.

- Foi por ela também, mas muito mais por amor. De onde eu venho, espero todo dia ler que você acordou, vestiu um lindo vestido florido, sentou naquela cadeira azul do jardim, deixou o sol iluminar cada parte desse corpo e alma maravilhosos e sorriu.

- Está frio demais pra isso, Marcos.

- Mas também é um dia de sol, amor.

- Você estará vendo?

- Eu vou estar lendo. Prometo imaginar. Também quero ler que esteves envolvida em longas conversas que acaloram o corpo e fazem o espírito saber que está vivo.

- Essas conversas... era assim com você.

- Sim, mas era você que me provocava a tê-las. Sei que continuas provocativa, amor e que há de ter maravilhosas conversas. 

- Soa como uma despedida...

- Na verdade é sim. Mas uma que já deveria ter acontecido muito tempo antes, Lenore.

- E você, querido? Como vai ficar?

- Vivo. Quando você permitir que eu reviva nas tuas memórias. E livre. Assim que permitires que a felicidade entre outra vez. 

- Está gelado, cada vez mais frio, Marcos.

- É minha deixa, amor. Quando eu partir agora, tudo vai aquecer. Me promete se permitir sentir esse calor?

Não houve tempo pra respostas. 

Mas um xale abandonado na sala vazia. 



domingo, 28 de maio de 2023

Esperável

Era de esperar que a tristeza fizesse morada já que alugou o seu corpo e mente por tantas estações que ao findar tomou-lhe de surpresa. 

Era de esperar que continuasse a expurgar desalentos através de histórias e que terapeuticamente desembaraçasse sentimentos em parágrafos de textos.

Era de esperar que desse voz à sua voz através dos altos e baixos de seus personagens e que continuassem perpetuando em linhas o que quer que lhe despertasse vontade de eternizar.

Era de esperar que calasse por alguns longos períodos em que  a confusão não poderia, deveria ou conseguiria ser transpassada ou que não existisse sequer um ponto para dizer. 

Era de esperar que calada também transmitisse, nas elipses, nos entremeios dos textos, nas reticências, no chamado mudo para que continuassem-lhe a história.

Era de esperar que não parasse o que lhe sempre fora, era e seria essencial. Era de esperar. 

sexta-feira, 19 de maio de 2023

"Tis the wind and nothing more!"


A senhora Lenore abriu apenas uma fresta da cortina da janela porque era feriado.
A casa estava vazia, dispensara todos os funcionários e, obviamente, não recebia visitas desde... bem, melhor pular essa parte.

O luz do sol entrou discretamente pela ampla sala de piso de madeira e até fez surgirem uns estalidos pela casa. Soava quase como um "viva", engasgado e ansiado pelo espaço.
A senhora Lenore sorriu do rumo dos próprios pensamentos e começou a pensar se com 49 anos já surgiriam os primeiros sinais de senilidade. Quase olhou pro lado e falou alto a piada, mas percebeu que... bem, não ouviria sua risada.

A senhora Lenore sentiu uma dor profunda, do tipo indescritível e inexplicável. Tremeu sem frio; não chorou. Fechou, com dignidade,  o xale fino e roxo, estrategicamente depositado no ombro diante dos constantes calafrios que continuamente dominavam-lhe o corpo e dirigiu-se até a janela.

E o sol brilhava em quase tudo, mas nem ousava aproximar-se dela.
No campo verde, nas flores do jardim, nas colinas mais adiante, em cada canto e espaço habilmente espalhados naquele lugar.
Se sentisse beleza, poderia achar lindo.
Se sentisse.

-Lenore?

terça-feira, 16 de maio de 2023

Monocular

Eu explodi mas não morri. Em plena BR 232. O ano era 2020, janeiro, dia 17, dois meses antes de iniciar a fatídica pandemia. Eu explodi e não morri, mas não esqueço. O sangue quente no rosto, o vôo, o impacto com o chão, os gritos entre as dores: Marcos, Marcos! A escuridão ocupando metade do rosto, as sirenes, dor, dor Dor.

Eu explodi mas não morri e tudo o que eu queria era pegar o caminho de casa, cruzar as rotas e trajetos que me separavam do meu lar. Um calibragem, um pneu, um detalhe. E é tudo o que se precisa, né? Um detalhe bem no meio do que deveria ser só mais um dia. 

Eu explodi mas não morri, tenho bandagens em todo o corpo. Curativos, emplastros, durex, esparadrapos, o "escambau" que decidem os médicos. Coisas que parecem, esperançosamente, me curar. E curam?  Passam dias, passam noites,  não passam as dores, quando vou voltar? Quando vou voltar a enxergar? E pra casa? Quando vou voltar?

Eu explodi e não morri, mas me parece que perdi pra sempre um olho. O esquerdo. O que me permitia cruzar com segurança pelas estradas. O que me permitia ser caminhoneiro. O que me permitia trabalhar.

Mo-no-cu-lar, como escreve? Tenho que me acostumar com a palavra. É agora o que sou, o que faço. O que o INSS usou pra me manter encostado. Aposentado.

Eu explodi mas não morri, estou distante da estradas, tenho 44 anos, estou vivo, acordo todo dia e agradeço. Rezo? Sempre fui ruim em decorar orações, mas rezo com o que conheço. Obrigada por me levantar, obrigada por me deitar ao final do dia. É todo o meu repertório, mas até que serve. Acho que serve pra Deus porque serve pra mim. 

Eu explodi e não morri, mas sabe? Posso compartilhar contigo? Não é fácil. Não é nem pelo olho, o que ficou é suficiente, mas é pela limitação. Pela impossibilidade. Não poder estar inteiro, nao poder fazer o que sou bom de fazer. 

Carregar, descarregar, dá destino, devolver. Tantas coisas já viajaram comigo pela estrada, aposto que até algo teu. Quer ver? Me diz só uma coisa. Qualquer coisa. Qualquer coisa antes de 17 de janeiro de 2020. Qualquer coisa. Qualquer coisa antes do dia em que eu explodi, mas não morri. 


Mil quatrocentos e sessenta e um dias e aquele dia.

Ao chegar em casa, coração em disparada, observou que as luzes estavam quase todas apagadas e não havia ninguém na sala. A surpresa foi tanta e o espanto ainda maior que nem racionalizou quando enveredou na missão quase impossível de correr no mais profundo silêncio pelas escadas. Ao menos abandonou os sapatos de salto na porta de entrada - o que lhe pareceu depois um ponto de lucidez na história que decidiu contar agora.

Quatro anos. Quatro anos e aquele dia. Não façam as contas, faço questão de dizer: quatro anos são mil quatrocentos e sessenta e um dias. Mil quatrocentos e sessenta e um dias em que a sua vida havia mudado de uma forma completa e absoluta. Em que havia aprendido a respirar de forma entrecortada, respirar por ela depois. Quatro anos em que ouviu o primeiro choro de sua filha, em que colocou ela no peito e achou que aquele sempre seria o melhor lugar pra ela ficar e descansar - ou que pelo menos esperava que fosse. Quatro anos em que a embalou todas as noites e as madrugadas adentro e em que cada abrir e fechar dos olhos daquele ser, tão seu e tão não seu também, torceu pelos melhores sonhos. Quatro anos... e aquele dia.

Ao abrir a porta do quarto, lentamente, viu que seu marido embalava a filha nos braços, sentado ao lado de sua caminha. A cadeira de balanço rangia um pouco - pelo peso daqueles dois corpos que mal cabiam ali, cumprindo uma velha tarefa que pela primeira vez não participava. O rumo ao mundo dos sonhos da sua filha. Fechou a porta e sentou nas escadas. O aperto, familiar e conhecido, tão recorrente na maternidade, não demorou pra ocupar o espaço já conhecido no peito. Culpa por não ter estado presente, mas mais do que isso, a mistura que sabia - experimentaria ainda mais no decorrer dos anos - a certeza que sua filha, apesar de sua filha, não era parte dela. Dissociar quando você está tão mergulhada ainda na maternidade é difícil e não sabia se seria fácil um dia. Talvez querer proteger e estar por perto é inerente, é indissociável, é daquelas coisas sem explicação que você entende quando se trata de mãe. Ou não, fique a vontade. Vou trabalhar na terapia. 

Mas toda mãe precisa estar inteira e todo porto, antes de ser um porto, precisa ser estável e seguro pra que cumpra sua missão. Ela não poderia esquecer dos próprios sonhos e projetos e da pessoa que também era e queria apresentar para sua filha, além da mãe. 

Resolveu contar a história transmitida pelo marido da primeira noite em que Eva, sua filha, dormiu sem ela. "Tranquila e calma" porque tinha certeza que ela estaria ali no amanhã, quando abrisse os olhos. Que estaria ali.

Veio-lhe à mente, rapidamente, uma história que lhe foi contada por uma recém adquirida amiga que estava saindo da casa dos pais e como o processo estava sendo difícil para eles. Lembrou que ao deixar a amiga em casa, de carona, cheia de caixas pra mudança, a mãe a esperava pra carregá-las, mesmo - talvez-  discordando dela. Ela estava ali.

Lembrou também da própria história contada pelo professor do curso, sobre os recortes que a mãe guardava, emplastificados e catalogados dos textos que escreveu ao longo dos anos, e o quanto foram importantes para a criação de um projeto seu. E a torcida. 

Então esboçou esse texto com algumas lágrimas que precisavam sair e desejou, de coração, ser a mãe que, um dia, mesmo sem concordar, ajudaria com as caixas ou aquela que guardaria todos os textos. 

Quanto aos sonhos, já torcia.  

domingo, 7 de maio de 2023

"Dois e dois são cinco"


Há a impressão, algumas vezes, que tudo está certo, não importa que errado esteja.
"Como dois e dois são cinco".
Assim como coisas e situações, há pessoas que nos causam essa mesma sensação.

Pessoas com que você enfrentaria um furacão e com quem ficar de cabeça pra baixo é tão aceitável quanto de qualquer outro lado.
Pessoas certas, em lugares certos ou errados, mas significando e dando, de alguma forma, sentido para tudo. Mesmo pro que não parece ter.
E pra improbabilidades.
Nesses momentos, há algo na alma tão longe da matemática, mas tão correto em qualquer que seja o resultado, que você sorri e vive, embora esteja além da compreensão.

Agradeço aos esbarrões que trouxeram esse tipo de gente pra minha dimensão, que trazem. Aos encontros breves e aos continuados. Àqueles adimensionais, extraterrenos daquele jeito: Extra. Aos que em cada amanhecer, junto comigo, fazem com que cada respiração valha a pena. Aos meus. 

Não importa a maioria das coisas quando o que é de verdade importa, não é isso?
Não importa.


(Astrologia é coincidência, então coincidentemente na minha cabeceira estão depositados alguns escritores: Saramago, Neil Gaiman , Alan Moore, Camus. Todos com o sol em escorpião.

É aleatório, no entanto, que eu costuma beber dessas leituras e extrair delas coisas que me apetecem e alimentam. 

É claro que é aleatório que me digam os amigos astrólogos que no zodíaco, escorpião é meu signo oposto complementar, como também meu ascendente, marte, saturno e plutão.

É aleatório sim, mesmo no ponto que envolve a leitura. Tenho preferência em ler o que envolve o âmago, as profundezas, os sentimentos em forma de texto captados em momentos de explosão ou reflexão. Quando sai tudo sem filtro. Adoro ler quem escreve, vive, gosta, ama, relaciona-se sem filtro. Não precisa dizer respeito a mapas e signos. Afinal, quanto a isso é aleatório).


segunda-feira, 1 de maio de 2023

Descolorimetria

É que não precisa ser preto ou branco, basta ser cinza.

(...)

Recentemente, descobriu-se cinza.

Até diria que cinza parecia ser a cor que mais representava sua alma. Seu estado. Seu espírito.

E fazia sentido. 

Porque nem gostava de cinza. 

Coisas cinzas não são tão fáceis de gostar se você pensar bem.

Nuvens anunciando dias de chuva ou tempestades, furacões em formações, as cinzas que recolhemos do que foi queimado, fumaças poluentes, pedras comuns e inexpressivas e até elefantes - eles são um dos mais amáveis animais, mas combinemos, que não são os preferidos da maioria (não falo de mim).

Há quem tenha alma colorida, amarelo intenso, vermelho carmim, rosa ensolarado, azul pacífico, roxo deslumbrante, laranja cintilante, verde encantador. "Colorimétrica". Linda.

A sua por pouco nem tinha cor. 

Mas se tinha, era o cinza.

Passeando bem no meio, entre a claridade absoluta e a total escuridão.

terça-feira, 18 de abril de 2023

Excelsior

Tuas marcas de sorriso no rosto e o timbre da tua voz quando fala o meu nome. 

Detalhes, pequenos detalhes, coisas preciosas, coisas inestimáveis.

Talvez sejam neles que resida o amor. No que singulariza.

As coisas inerentes, as coisas caras, raras, próprias, ímpares. Sui generis.

Únicas, tão únicas que quase solitárias na sua especialidade.

O que faz de você, Você.

O que me faz te achar na multidão.

O que te faz me achar na multidão.

O que me faz te adorar dia após dia.

A forma contínua de sorrir comigo, de mim e para mim.

Os detalhes, o cheiro, o sentimento com a tua chegada.

A forma como encaixa a minha mão na tua mão.

...



sábado, 15 de abril de 2023

Tinha no seu corpo marcas de pequenos acidentes com a própria saúde. Imperceptíveis aos olhos, mas não ao coração.

No coração, ela sabia o que aquelas marcas representavam. Mas dessa vez, nesse texto, o foco não será a dor, mas a cura. É preciso lembrá-la sempre que venceu. 

Há uma insistência recorrente de olhar pro que passou com pena e pesar. O que talvez seja inerente à sua própria natureza. Mas vamos lá, vamos ao sucesso. Vamos ao momento em que superou. Vamos às novas oportunidades, aos recomeços, às chances que teve, que tem. 

Vamos recordá-la que ter passado por algunas intempéries e sobrevivido, não faz dela uma penitente. “Tá mais pra coisa de vencedor”. E que ela não é fragil, já se provou que não quebra. E o que mais? 

 - É que é difícil se ver forte e com sorte, às vezes. 

- Entendo perfeitamente, mas é necessário. Aprende. 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Um diálogo leve, mas pagão

 -Há coisas maiores.

Me disse, enquanto depositava a maldita chave do inferno na minha mão. Apenas uma simples alusão ao local e um toque no objeto que pertencia à ele, fazia minha alma inteira arder.

- Eu não entendo qual função exatamente espera que eu exerça lá - falei por entre dentes, mal conseguindo disfarçar meu desconforto pra deus.

- Sempre achei que não precisaria explicar como funciona um cérebro pra uma criação que concedi um.

- Pelo visto não sou o anjo mais esperto daqui, deus. Por que não escolhe outro?

- Ah, sinto prazer de vê-lo me questionando. É tudo que espero do livre-arbítrio. Mas nem por isso preciso explicar minhas razões.

- E como conhece suas criações, sabe bem que eu não aceitaria uma imposição sem questioná-la.

- E como conheço minhas criações, escolhi você, Gabriel. Encerramos essa parte, não?

- Nunca achei de verdade que me escutaria.

- E mesmo assim não deixou de tentar e é por isso, Gabriel.

deus fez um gesto me chamando para ler o Livro dos Livros e abriu a página do inferno. O barulho ensurdecedor de inúmeras almas em desespero ecoou pelo ambiente. Se ele não fosse deus e eu não fosse um anjo dele, seria um golpe fatal pros nossos ouvidos e nosso espírito. Mas seres humanos que se abalam com gritos de dor.

- Eles precisam, Gabriel. Precisam de alguém que não desista. Nunca parou pra escutar os pedidos de milagre que vem do inferno, meu filho? De todos que recebo são os mais urgentes e desesperados. Nunca prestou atenção a eles?

- Até poucos minutos atrás não era função dos anjos cuidarem do inferno, deus.

-Mas é onde precisa-se mais urgente deles, meu filho e você será o primeiro de muitos que deverão habitar lá.

- Você me manda pro inferno, deus, pra abrandar desesperos, sem pensar que estarei também em desespero por isso. Arderei todo dia como se queimado no próprio sol, derreterão minhas asas, andarei entre os piores espíritos com poucos poderes ou nenhum, sabendo que nunca tive escolha, mesmo que me diga que sim.

- Mas Gabriel, o principal alimento e fonte de poder dos anjos... de onde vem?

...

- Você sabe que anjos são feitos, alimentados e aperfeiçoados com matéria de esperança. "E o que seria do inferno se todos ali não sonhassem com o céu"? Você viverá mais forte, meu filho. E mais forte ajudará outros a viver.

A chave continuava pesando, ardendo e queimando profundamente, mas entendi. Resolvi fechá-la na mão. 


quinta-feira, 6 de abril de 2023

Querida Justiça, (editar)

Temos algumas coisas para conversar.

Demandas, questões, esclarecimentos.

Passei ontem por você, carregada de documentos para protocolar. Casos novos, casos velhos, pastas, catálogos, tudo que estava na minha mesa e até alguns dos arquivados.

Cega, você não me viu. 

Tudo o que eu queria era legitimar as minhas peças, saber o peso que tinham na tua balança. Nela deposito tanta esperança… tudo que me pleiteiam, que eu vasculho até encontrar uma saída, uma solução. No direito esse é um tipo de pensamento sagaz e necessário, mas inocente ao ponto de ignorar as variáveis que não deveriam interferir no teu julgamento. 

Na verdade, figurativamente, você representa o julgador. E o julgador traz com ele as próprias váriaveis e o poder do martelo.

E quando, na história, poder, necessariamente, faz um homem justo?

Querida, Justiça, estou exagerando.

Já me deparei com bons julgadores e sei que perder faz parte do mundo da advocacia. Do mundo, aliás.

O gosto da derrota deve ser palatável, mesmo que difícil de digerir. É necessário para virar a página e correr com a mesma energia atrás do recurso. É necessário conhecer a derrota para valorizar ainda mais a vitória. E tudo o que vem com ela. É o que faz do advogado um batalhador. É o que reforça nosso arcabouço de luta. 

Querida, temos muitas pautas pra discutir. E outras em formação, pela frente. 

Tenho colhido muita felicidade na nossa relação, crescimento. Estou, certamente, na fase em que experimento frutos bons da tua árvore. Recolho, cheiro, devolvo a quem é de direito. Sigo. Quero aproveitar, mas não me iludo, querida. Não me iludo achando que todos os sabores serão doces. Nada na vida é invariavelmente assim. 

Que no nosso caminho, intrínseco e inevitalmente conectado, possamos continuar esse diálogo que nem sempre é bom, mas  que a tua existência me dá a possibilidade de trazer à tona. De colocar na mesa. De lutar por ele. 

Você é um símbolo, querida. Um depósito de esperança que eu preciso acreditar. 

E se não fizer sentido, o que faz? 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Chaos uma vez ao mês

Talvez e às vezes eu não me sinta bem.

Pode ser fisiológico, hormonal, sentimental ou patológico.

Tento esconder, disfarço, maqueio bem.

Mas talvez e às vezes, eu não me sinta bem.

A vontade de estar inteira em tudo, com todos é sempre maior e supera. Me supera.

Mas talvez e às vezes eu precise de um espaço onde não estar bem seja tão natural quanto estar bem também.

Talvez e às vezes eu precise não estar bem pra poder estar bem.

Um tempo pra permissões, permissões maculadas.

E tudo bem.

Talvez e às vezes eu precise deixar uma página inteira riscada, só com traços, sem rimas nas palavras. Rabiscada. Caótica. Desconexa. Digna de erratas. 

Ou lotada de coisas impróprias.

Talvez e às vezes.

Só talvez. 


segunda-feira, 3 de abril de 2023

Herdou a chave do inferno e despiu suas longas asas brancas antes de passar pela porta.

Não recebera instruções sobre o que fazer a seguir.

Disseram apenas que de todos os locais era o que mais precisava de milagres.

E era por isso que estava ali.

sexta-feira, 24 de março de 2023

“Felizes os cães, que pelo faro descobrem os amigos”

Era um cãozinho machucado.

Ninguém conseguiria notar caso não se aproximasse bastante dele.

Parecia estar sereno, dormindo, deitado sob o Sol.

Apenas um segundo olhar denunciava que de cada olhinho fechado, escorria uma lágrima.

Apenas uma revista maior, próxima, poderia verificar que as duas patinhas encostadas no chão estavam feridas.

O cachorrinho lindo sentia, silente, sua dor.

Ela, sem experiência nenhuma com animais, mas com muito jeito, aproximou-se.

Chamou pelo celular quem tinha jeito, experiência e número de veterinários.

Encostou uma mão amorosa na cabecinha do cão.

Juntos, aguardaram. 

-Vai ficar tudo bem, pequenino. Tudo bem.


quarta-feira, 22 de março de 2023

Diálogo com Sandman ou discussão continuada com o Rei do Sonhar

- Você sempre soube do perigo que envolvia a obra, então por que, exatamente, continuou a empreitá-la?

Ele não respondeu. Claro. Sandman, Rei dos sonhos, levantou os olhos pra mim e sem palavras me notificou o óbvio. Estava na sua própria essência, sua razão de existir.

- Você continua visitando o meu reino e ainda assim não compreendeu?

-Não compreendo o que não faz sentido.

- Então acho que está na hora de parar de visitar o Sonhar, não acha?

-Sim, claro, mas depositei algumas histórias nas estantes. Devo pegá-las com Lucien?

- Se abandonar o Sonhar, deve abandonar também todas as histórias que depositou nele.

- São minhas, eu as criei. É justo tomá-las de volta.

- E o que você faria com as histórias que sonhou em um mundo sem sonhos?

- Serão como contos, fantasias. Morarão no meu criado-mudo. Posso olhar pra elas antes de dormir.

- Você dormirá com seus sonhos de lado e acha que isso a impedirá de sonhar com eles?

 - Não são mais meus sonhos. São apenas histórias.

- E o que a impede de abandoná-las então?

- Eu...

- Você quer carregar parte do meu mundo com você, mesmo negando a importância dele. Como soberano de tudo que está aqui, devo continuar minha missão.

- Mas..

- Espere! Ainda não terminei. Vá agora e não volte. Mas dos seus sonhos eu cuidarei. De cada sonho abandonado. É o que faço.

Ela sabia que ele falava a verdade. Era Sandman e no que competia a qualquer tipo de sonho, inclusive os abandonados, ele tinha um conhecimento muito maior do que ela. Virou as costas desolada. Pé ante pé, iniciou sua partida do Sonhar. Era tão decisivo quanto difícil dizer adeus.

( ) Primeiro Final (optativo, universal):

- Humana, espere.

Olhou pra figura Perpétua e grandiosa que dava sentindo àquele mundo e quase tanto ao seu também e se surpreendeu com o que parecia quase um sorriso no rosto (?) dele. 

- Continuarão na estante se decidir voltar.

- Vai cuidar bem deles?

- Humana, sonhos não são feito de carne e osso, são ideias solidificadas, por isso o que você entende como ameaça e destruição não os destruirão. "Ideias são à prova de balas".

-Quer dizer que não morrerão?

- Quer dizer que como Morpheus vou continuar guardando cada sonho abandonado e que mesmo que os seus não a alimente e sirva mais, estarão na minha estante para servir e alimentar os sonhos de outras pessoas que deles precisarem. Durarão mais que a sua própria existência. Percorrerão as estradas do tempo quando não estiveres mais aqui e assim como outros sonhos que estão nessas estantes, impulsionarão as criações fantásticas e absurdas do seu mundo. Até o fim.

- O mundo é feito de sonhos abandonados é o que diz Rei do sonhar.

- O mundo é feito por histórias que já foram sonhos. E os mais difíceis são os mais fáceis de abandonar.

-Então até os difíceis...

- Até os impossíveis. Vá.

Me tranquilizou, Sandman.


( ) Segundo Final (Optativo, simples e íntimo):

- Humana, espere.

Olhou pra figura Perpétua e grandiosa que dava sentindo àquele mundo e quase tanto ao seu também e se surpreendeu com o que parecia quase um sorriso no rosto (?) dele. 

- Continuarão na estante se decidir voltar.

- Vai cuidar bem deles?

- É tudo o que faço. É quem eu sou.


(Em vez de licença, peço perdão poético à Neil Gaiman e Alan Moore por tudo que emprestei nesse texto. Inclusive por ter escrito dois finais. É muito difícil escolher como um sonho deve terminar).

sexta-feira, 17 de março de 2023

Indomável

"Escrever é que é o verdadeiro prazer; ser lido é um prazer superficial".

Das palavras de Virginia Woolf, compreendeu o porquê de continuar adiando o momento de apertar a tecla de "enviar" o livro para o editor. 

Há algo de vital e precioso que pretende preservar no que entende por escrita. Há algo que, falando se si, funciona apenas no processo de produção que começa da primeira letra ao último ponto. Algo que a reprodução nunca vai conseguir transmitir exatamente. Algo tão extremamente conectado à ela que não funcionaria para ninguém mais.  

Ela sentir-se-ia presa se, por um momento, passasse a ser interpretada. Não fazia sentido. Ninguém, de fato,  realmente entenderia  as emoções que, intimamente, foram tocadas quando passou a exprimi-las em um texto. Nunca escreveu qualquer coisa que fosse pra comunicar ou transmitir. Deixava isso pras cartas. Pros grandes comunicadores. Para todos os maravilhosos escritores que dominam a arte de escrever para fora. Para quem deve e precisa ser lido. Para você, escritor/a, que escreve e consegue tocar os outros com as palavras. Pros grandes e eternos textos cheio de significados. Para Virginia Woolf, que também precisava vitalmente das palavras, mas tinha o domínio absoluto de transmitir profundidade com elas. Para aqueles que marcam e merecem serem citados, ecoados, replicados, lembrados, comentados, debatidos, respondidos.  

Ela não tinha esse domínio e até preferia continuar escrevendo dessa forma, indomável. Não queria que lhe cortassem as vírgulas, por mais mal empregadas que as tivesse utilizando. Não queria alcançar. Não queria ser alcançada.