terça-feira, 21 de outubro de 2025

"Porque quem é mesmo é não sou"


Se ele pedia licença, eu dava. Não havia mais razão para discutirmos. O homem era duro, firme. Quando queria, queria, era assim. Nunca fui boa com essas coisas de contundência. Amoleço no primeiro olhar.

Quando eu entrava na casa, era lei: que não olhasse para o canto direito, mas apurasse os ouvidos. Mais tarde conversaríamos e eu teria que ter as notas em mente. Sol, do, lá, Mi em reto. Minhas mãos pintadas de sangue quando errava... Mal sinto o polegar direito. E ainda as tarefas da casa para terminar... Eu apurava melhor do que podia. Desejando, se possível, melhor audição que a minha. Orelhas gigantes, memória infalível. Eu odiava o porão da casa.

— Venha. 

Eu o ajudava a vestir o paletó, ajustava os desamassos e o acompanhava ao teatro. Nunca assistia a peça, (Nunca olhar. Escutar), apurava os ouvidos porque teria que narrar a parte técnica. Não adiantavam os aplausos, o homem não sorria. Entrava no camarim, eu virava as costas, se escutei tudo? Sim, perdão, sim, senhor. Senhor.   

No porão há uma janela e uma luneta. Herança de alguém que habitou aqui. Talvez a mulher antes de mim. Os lençóis nunca foram trocados. Há marcas iguais às minhas. Quase sempre afundo no colchão e adormeço. Outras vezes, tento alcançar algo do céu com a luneta. Talvez tenha visto uma planeta, umas estrelas, coisas que estão lá. Eu não sei distinguir os borrões na lente, já quis ter estudado, já quis bem mais. Hoje, só desejo que apareçam, não importa que nome tenham e a forma que assumam.

A musica do homem é aplaudida, aclamada. Os teatros sempre cheios, os cumprimentos na rua, na igreja. Ouço todos, cabeça sempre baixa. O homem agradece, a voz automática. Grita à noite que não entendem. Ninguém entende. Muitas vezes não dorme, derramando notas pela casa. Se é belo? Nunca soube, nunca pude parar para apreciar. Eu cubro o homem exausto deitado no chão do tapete, recolho as garrafas. Não é bonito agora. Talvez no teatro seja sim. Eu preparo um banho gelado e arrumo as vestes. Não consigo organizar o que tem dentro, mas até que administro o que há fora. O homem tem olhos verdes, recordo. Só recordo. (Nunca olhar).

Uma vez quis tocar com ele. O homem riu. Mulheres não criam músicas, criam filhos. Já estive grávida. A criança viveu pouco tempo dentro de mim. As músicas do homem seriam imortais, ouvira uma vez. Mas o filho não chegou a nascer. Se tivesse... poderia olhá-lo. Poderia olhar alguém. E amar. Talvez o homem também. Ou talvez as pequenas mãos do filho já chorassem antes mesmo que crescessem. Se ele não escutasse. Sol, do, mi. Uma criança não merecia aquilo. Tomava ervas para não engravidar outra vez. (Não se preocupe. Estão bem escondidas).

A luneta é um objeto interessante. É quase um portal. Quando não afundo no colchão manchado de sangue, viajo para os planetas através dela. Batizei alguns, por não saber os nomes. O mais distante é o Aurora. Temo não alcançá-lo, ainda que em sonho. Raramente surge e quando o faz é apenas um borrão. Quase apagado. E as estrelas, se passam, passam rápido demais. 

domingo, 12 de outubro de 2025

Lua Minguante


Minha filha desenhou uma lua minguante. 

Uma lua ao contrário, invertida.

Não convencional.

Amanhecemos estudando as suas fases.

Nunca havia parado nesse tópico da astronomia. 

Sempre olhei para o alto e admirei sua beleza, sem precisar compreender ou dar nomes.

Minha filha me fez nomear a beleza da lua.

E, me fez pensar, e escrever sobre ela.

Era só um desenho: montanhas, assinatura invertida, lua ao contrário.

Mas se não existisse as mãozinhas dela, criativas e cheias de cor…

se não existisse os olhinhos dela, curiosos e questionadores…

Passaria a vida sem conhecer as fases da lua.

E além.

Passaria a vida sem me conhecer.

Porque uma lua minguante, assim invertida, 

me causa certa ternura e identificação.

Essa coisa de sombreamento e resistência, sabe?

“Uma estreita faixa convexa iluminada”.

A lua minguante está a um pontinho de apagar, 

um passo de sumir nos céus 

e virar lua nova, invisível.

Ainda assim, está.

Um fase, um ciclo.

Voltará a crescer, assim como minguar.

Voltará. 

Sobre a lua nova, descobri não ser visível aos observadores, porque a sua face iluminada está voltada inteiramente para o Sol.

Como se desse as costas à terra e não nos permitisse enxergar sua luz.

Invisível, à noite, aos que não conseguem imaginar.

Mas visível durante o dia, para quem a busca.

E é nessa fase que ocorrem os eclipses.

Esse bloqueio de luz ocasionado por alinhamentos temporais, que chamei de fusão até hoje.

Mas a minha minguante não. 

É quase sombra, mas ainda é luz.

Para a terra e para o sol.

E eu não saberia nada sobre lua, nem amanheceria amando a natureza peculiar de seus detalhes, se não fosse esse desenho feito pela minha pequena artista.

E que hoje acrescentou “astrônoma” à sua lista infinita de possíveis profissões…

domingo, 5 de outubro de 2025

A estação Saint-Lazare


Eu não esperava seguir até o terminal. Ruído de motor, cheiro de diesel, as rodas girando, freando. A mulher sentada abria o jornal e cada passagem de folha me arranhava as coxas. As notícias ferinas do dia. Apesar, Recife, quero estar aqui até morrer. Afogada em teus níveis abaixo do mar. A brisa nos cabelos, assanhando a alma. O ônibus voando pela Avenida Beira Mar e cortando as pontes até o centro. 

           

— Última descida. Vamos acordar!

 

Na Estação, cheiro de histórias. Piso em tijolos pisados. Tec, tac. O eco dos meus sapatos, meus pés. Talvez sinta falta. Andamos aqui. A Rua Nova, antiga. Sobrados por todos os lados. Muitos vivem no mesmo lugar em que muitos morrem. Sempre gostei dessas filosofias dos becos. Corto as ruas, sinto as cicatrizes. Faço algumas, recebo outras. E ali, a loja de livros religiosos.


—Licença.


Toda.

Meu pai e a teologia. Boneco de Jesus Cristo. O presépio no natal, os animais espalhados... burro é jumento? Onde estão os pássaros? Cachorros, patos? O que é mirra? O pai nunca respondeu. Deveria saber. Não era a grande história? Teologia. Abria a agenda e escrevia todas as manhãs. Onde entrava a melhor luz na casa. Distante, sábio. Olhos cinzas. Lembra o quadro. A estação Saint-Lazare. Dizem que Monet pintou várias vezes… pinceladas simulando fumaça de locomotiva. Nunca satisfeito. Meu pai tinha olhos de fumaça… Nunca satisfeito. Gostava do quadro. E de estações. Do pai também?


— É perigoso ficar na rua até tarde, mocinha. 


O bêbado sorri, será que sabe que perdeu os dentes? A chave emperra, giro, puxo, giro até o clec fazer surgir as escadas. Desci hoje pela manhã, um, dois, tec, tac, treze lances. O número do azar. Amanhã descerei outra vez. Subo agora. É assim, não é? Idas e vindas. Mas gosto. Gosto dos movimentos rotatórios. Dá esperança. Gosto… Não quando repito os gestos. No lugar de melhor luz. Distância, linhas, um sorriso para ninguém. Medo de ser igual. Sinto calafrios ao dobrar as esquinas. Abro as janelas.


— É um forno.


Sim. A noite não abranda o calor do dia. E o vento não entra nem com a janela escancarada. Tiro a roupa, bebo litros d’água. Recife, “quelle chaleur”! A francesa que morreu no prédio vizinho, me ensinou algumas frases. Não quer conhecer a França? Tudo bem, nunca quis conhecer o Brasil, mas aqui estou, ma chérie. Há varios lugares do Globo onde poderia estar, mas poucos em que gostaria. França? Talvez, talvez a Estação Saint-Lazare…. ainda existe? Como seria enxergar a locomotiva através da fumaça? Os olhos do meu pai enevoados. Talvez fosse mais fácil com a fumaça.


— Shhh.


A luz natural atravessava o vidro ou a janela aberta perto da mesa da sala. Ele está escrevendo, silêncio, cabeça baixa. A mesa era de madeira avermelhada, vidro no meio, arranjo no centro. Todas as manhãs minha mãe arrumava as flores artificiais. Como se adiantasse cuidar de algo que não possui vida. Via pousar a mão no ombro do meu pai. Ficar por segundos? Acho que mais. Ele nunca se movia. Uma estátua de pedra. Cinza. Firme…


Sonhei com ele ontem. Eu descia uma torre antiga de escadas giratórias. Encontrava um pequeno lago no fundo e uma estátua. A estátua falava. Era ele. Fugi, subi correndo, escorreguei? Parecia uma terra antiga, campos verdes. O que falou… Não consigo recordar. Queria lembrar, queria, queria lembrar se ao menos trocamos algumas frases. No sonho, na vida. E que mulher a minha mãe! Dela, gosto. Arrumava as flores, alisava o meu pai. Colocava os cabelos que fugiam no lugar.


Como se adiantasse.