domingo, 5 de outubro de 2025

A estação Saint-Lazare


Eu não esperava seguir até o terminal. Ruído de motor, cheiro de diesel, as rodas girando, freando. A mulher sentada abria o jornal e cada passagem de folha me arranhava as coxas. As notícias ferinas do dia. Apesar, Recife, quero estar aqui até morrer. Afogada em teus níveis abaixo do mar. Ele nunca voltou. A brisa nos cabelos, assanhando a alma. O ônibus voando pela Avenida Beira Mar e cortando as pontes até o centro. 

           

— Última descida. Vamos acordar!

 

Na Estação, cheiro de histórias. Piso em tijolos pisados. Tec, tac. O eco dos meus sapatos, meus pés. Talvez sinta falta. Andamos aqui. A Rua Nova, antiga. Sobrados por todos os lados. Muitos vivem no mesmo lugar em que muitos morrem. Sempre gostei dessas filosofias dos becos. Corto as ruas, sinto as cicatrizes. Faço algumas, recebo outras. E ali, a loja de livros religiosos.


—Licença.


Toda.

Meu pai e a teologia. Boneco de Jesus Cristo. O presépio no natal, os animais espalhados... burro é jumento? Onde estão os pássaros? Cachorros, patos? O que é mirra? O pai nunca respondeu. Deveria saber. Não era a grande história? Teologia. Abria a agenda e escrevia todas as manhãs. Onde entrava a melhor luz na casa. Distante, sábio. Olhos cinzas. Lembra o quadro. A estação Saint-Lazare. Dizem que Monet pintou várias vezes… pinceladas simulando fumaça de locomotiva. Nunca satisfeito. Meu pai tinha olhos de fumaça… Nunca satisfeito. Gostava do quadro. E de estações. Do pai também?


— É perigoso ficar na rua até tarde, mocinha. 


O bêbado sorri, será que sabe que perdeu os dentes? A chave emperra, giro, puxo, giro até o clec fazer surgir as escadas. Desci hoje pela manhã, um, dois, tec, tac, treze lances. O número do azar. Amanhã descerei outra vez. Subo agora. É assim, não é? Idas e vindas. Mas gosto. Gosto dos movimentos rotatórios. Dá esperança. Gosto… Não quando repito os gestos. No lugar de melhor luz. Distância, linhas, um sorriso para ninguém. Medo de ser igual. Sinto calafrios ao dobrar as esquinas. Abro as janelas.


— É um forno.


Sim. A noite não abranda o calor do dia. E o vento não entra nem com a janela escancarada. Tiro a roupa, bebo litros d’água. Recife, “quelle chaleur”! A francesa que morreu no prédio vizinho, me ensinou algumas frases. Não quer conhecer a França? Tudo bem, nunca quis conhecer o Brasil, mas aqui estou, ma chérie. Há varios lugares do Globo onde poderia estar, mas poucos em que gostaria. França? Talvez, talvez a Estação Saint-Lazare…. ainda existe? Como seria enxergar a locomotiva através da fumaça? Os olhos do meu pai enevoados. Talvez fosse mais fácil com a fumaça.


— Shhh.


A luz natural atravessava o vidro ou a janela aberta perto da mesa da sala. Ele está escrevendo, silêncio, cabeça baixa. A mesa era de madeira avermelhada, vidro no meio, arranjo no centro. Todas as manhãs minha mãe arrumava as flores artificiais. Como se adiantasse cuidar de algo que não possui vida. Via pousar a mão no ombro do meu pai. Ficar por segundos? Acho que mais. Ele nunca se movia. Uma estátua de pedra. Cinza. Firme…


Sonhei com ele ontem. Eu descia uma torre antiga de escadas giratórias. Encontrava um pequeno lago no fundo e uma estátua. A estátua falava. Era ele. Fugi, subi correndo, escorreguei? Parecia uma terra antiga, campos verdes. O que falou… Não consigo recordar. Queria lembrar, queria, queria lembrar se ao menos trocamos algumas frases. No sonho, na vida. E que mulher a minha mãe! Dela, gosto. Arrumava as flores, alisava o meu pai. Colocava os cabelos que fugiam no lugar.


Como se adiantasse.