sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Ondina

Estou olhando pela janela, sentindo a brisa que vem direto do mar de Ondina. A casa abandonada na areia, se não fosse minha estadia. As ondas entrando no piso pela parte inferior da porta e inchando a madeira. São quatro horas da tarde e aqui demora a escurecer. Um dos motivos que escolhi o local para escrever essas palavras. Meus problemas com a escuridão.

Esfrego os olhos. Pelo quê? Qual a conta do dia? Uso os colírios de sempre, as dores suavizam por minutos, me enganam os remédios, as receitas, os prognósticos para o bem. Estou ficando cego e ninguém teve coragem de dizer. Sabem que é com os olhos que vejo o que escrevo. E sabem que é com o que escrevo que… bem, voltemos ao papel, acabo de encontrar o lápis que perdi na mesa.

Eu gosto de ouvir as garças deste domingo. E admirar as que pousam nas pedras próximas. Ondina. Demorei a encontrar esse lugar. Como poderia se nunca o busquei antes? Ainda há pouco, em salões iluminados, fazia um brinde às histórias. Às partilhas. Ao senso comum. Desde que me falharam as funcionalidades do corpo, me falhou também a paciência social. Me falham as mentiras. Me cansam os sorrisos mascarados. As garças abrem as asas, fecham. Enfeitam de branco a paisagem azul. Por quanto tempo… não, não vou voltar ao lamento. Achei outra vez o lápis.

Está escurecendo agora ou… respiro ao constatar no relógio que são sete horas. Sim, a escuridão ainda não me é particular. A noite cai em Ondina e o mar se veste de azul profundo. As garças me abandonam e devo acender a luz antes que gaste mais uma folha. Quero descrever meu exílio nessa cela que escolhi. Quero contar sobre as manhãs laranjas em que me alimento de pão duro e café recém-coado enquanto sento nesse mesmo lugar. Sobre ter os papéis e não pertencer a nada mais. Já falei das garças, mas pecarei nesse ponto. Seriam indevidas quaisquer palavras. 

Que Ondina é uma praia pouco habitada, certamente já percebeu. Onde poderia encontrá-la no mapa é o que desafio a fazer. A minha maior dificuldade em localizá-la foi necessitar dela. Ondina está para alguém que não está para nada mais. E é bela sim, embora aqui tenhas que amassar o próprio pão. Nunca me queixei dessa habilidade até precisar dela. É assim, não é? Sentimos o que falta? 

Meu estômago reclamou. Tropecei na cadeira ao procurar o interruptor e amei a luz fraca que acendeu a cabana. Comi o resto do pão da manhã e esperei a água ferver. Demorei a encontrar o pó de café, sempre esqueço onde o coloco, por nunca estar pensando nele, mas em uma coleção de outras coisas. Onde estão os colírios? Voltei à mesa procurando por eles, não levantei e terminei escrevendo até esse ponto. O barulho de água fervendo me levou até a cozinha, onde coei o café. Bebo o líquido quente enquanto continuo esse registro. Uma garça perdida e graúda senta perto da minha janela. Sinto que olha para mim. Penso que me enxerga.

Por quanto… por quanto tempo… quando… quando vou parar… quando vai acontecer… quando… até quando? O animal abriu as asas, não foi? Eu vi o movimento. Eu vi… eu vejo, eu ainda… que lindo. Não falei que me eram imprecisas as palavras? Impróprias para um escritor. Eu não consigo, eu não consigo falar, não consigo falar das garças… não quero…. há luz, o lápis, recuperei outra vez, outra linha, sobre o exílio, sobre Ondina, sobre o tom alaranjado do lugar, o céu, pão, o café…

… menos as garças. 


Nenhum comentário: