Vinte e uma horas. O relógio marca indubitável. Ajeito os jornais, passo os olhos pela sala e, sentado na poltrona, iniciando a folha sete das notícias, ouço a porta abrir.
- Alexandre! Terminei outro capítulo! Desse você vai gostar, escuta. É sobre Tânia e Edilúcia. Na praia. Adivinha o que estão lendo juntas? “O amor não tem bons sentimentos”. Cada uma, uma página. Posso te mostrar?
A voz saía rápido e a respiração falhava no final. Quanto mais alto o seu grau de excitação, menos se fazia inteligível. Fechei o jornal e assenti com a cabeça. Ouvi-lo-ia por duas horas que talvez se arrastassem no tempo. Anotações desconexas, palavras confusas, um embaraço de ideias e sentimentos. Seu texto. Seu livro. Ao final, me encararia, o reflexo denunciando a gota de suor que escorria pelo rosto e com algo parecido com um sorriso, perguntaria:
- E então? - olhos brilhantes - Diga. Sem piedade. Gostou?
Ele entrava sem bater, o escritor. Simplesmente abria a porta. Pelas roupas amassadas e cabelo oleoso, trazia no papel, a obra de uma noite em claro. Ou várias. O provável é que nem tivesse levantado para ir ao banheiro ou se alimentar. O gosto da criação aguça o paladar, invade, farta. Quantas vezes não senti o mesmo?
- Há quanto tempo não dorme? - indago.
- Dormir! Dormir! O que tem haver o sono com o sonho? Não posso dormir agora Alexandre, não com outro capítulo pedindo para existir.
- Antes da minha opinião, você precisa de um banho e um café. Vou cuidar do último.
- Não preciso…Veja como pode ser: Tânia acaba de ler o capítulo e elas escutam uma música que toca à distância. Demoram para identificar que é Billie Holiday, Blue Moon. Edilúcia se levanta…
- Vou pegar o café.
Observo seu rosto murchar com a interrupção e as luzes parecem diminuir com o movimento, embora os olhos continuem vidrados. Alucinados. Enxergam o que ninguém vê. Sua história, seu livro. Me levanto sem falar e sinto a tontura bater. O braço da cadeira evita a queda, agarro-o, finco os dedos. Merda. Labirintite. Hipoglicemia. Parkinson. Diagnósticos rondam a mente, um zumbido alto no ouvido abafa tudo, abafa o mundo, abafa os delírios dele, o “outro capítulo”. Um outro punhado de alucinações irreais, fugas. Os personagens dançam e leem na praia, enquanto senta na cadeira e esquece a própria fisiologia.
- Elas dançam por um bom tempo, os pés deixando desenhos na areia, mas logo a natureza curiosa de Tânia, a carrega para outro caminho. De onde vem a música? Não existe casa nas proximidades, pessoas. A praia, à noite, está deserta e se não fosse a amiga, sentiria-se completamente solitária. Quem colocou para tocar? Um sax….
Ignoro. Também fiz isso hoje. Construí um cenário em que um homem corre, pulmões cheios de oxigênio, joelhos fortes, sem contar os quilômetros. Milhares deles. Sadio, viril, firme. Enquanto eu bambeio com poucos passos. Vertigem. Náusea. O personagem corre quilômetros e meu corpo reclama metros. Tento servir o café na xícara sem tremer, mas borro de marrom o pires em que o deposito e o paninho que já fora branco da bandeja.
- Talvez se eu quebrasse esse parágrafo aqui e melhorasse o ritmo...
O personagem corre, dança, indaga, lê capítulos do livro em uma praia deserta. E o escritor eleva a xícara com as mãos trêmulas e sorve o café sem sentir o gosto. Ora, o gosto não está no café, na comida. O que o alimenta são as palavras. Acertara? Errara? Para o leitor? Para ele? De qualquer forma, continuaria. Outro ponto aqui, uma cadência na palavra ali, um parágrafo pequeno e suficiente, mesmo que desconexo, absurdo, como agora.
- Talvez...
Ele não sente o gosto do café, não enxerga o paninho borrado, as cortinas empoeiradas, as frutas podres no balcão, não sente o cabelo grudar no couro cabeludo, não ouve as batidas na porta, ele continua. Eleva a xícara até os lábios, mesmo derramando o líquido quase todo pelo caminho. Extravasa. Outro capítulo pedindo para existir! Quanto tempo exigiria dele? Quanta vida? E eu o entendia. Ah, entendia. A alucinação, as noites em claros, a desconexão com o resto do mundo. Eu o entendia, maldição, e como. Seu texto, meu livro. O escritor era eu.