domingo, 31 de outubro de 2021

Shot

O dia começou frio, mas nele morava a promessa de ser o mais quente.

Sentiu que deveria fazer planos, parecia tão propício, tão natural. 

Consumiu, ávida e desejosa o café da manhã, impaciente com as vontades latentes.

A intenção era que fosse tão bom, tão bom, que acordaria ainda sorrindo amanhã. 

sábado, 30 de outubro de 2021

13 filhos

(Inspirada - infelizmente - em fatos reais)


A mãe arrastava a roupa preta pela casa. Era 1958.

Seus doze filhos não conseguiam dormir. Espantados, colavam ouvidos na porta dos quartos coletivos que dormiam, conspirando, com troca de olhares, as possibilidades pra um dia melhor amanhã. 


No fundo, quase colado à garagem, um jovem alto e esguio, tentava, ocultamente, sintonizar seu rádio. Em todo o país, gritos de comemoração pela seleção que ganhara a primeira copa. Menos ali. Todo e qualquer grito e suspiro e vontade de felicidade estavam calados ali. Velados. Proibidos. 


O jovem, inteligente e astuto, tentava burlar de alguma forma a nova lei que se instalara, buscando, insistente, alegria nas ondas de rádio. Ou menos tristeza. Não sei por quanto tempo insistiu e nem se conseguiu, porque em um quarto menor, duas crianças bem pequenas quase choravam. O menor, um menino, havia desaprendido a expressar suas emoções com palavras. Calara-se e na sua mudez existia o protesto de quem jamais entenderia. Do seu lado, de mãos dadas e apenas um pouquinho maior, a outra criança, loirinha, trajava uma roupa de dormir que quase lhe cobria os pés. Diziam que passava o dia desfilando pela casa, andando pelos corredores à noite, conversando entre sussurros com a mãe através do véu e do seu manto grosso de tristeza, mas não. Não era ela. 


A mais corajosa das irmãs era a que entrevia através do buraco da fechadura a hora em que a mãe se ajoelhava com uma vela. Seu nível de coragem ia descendendo à medida que, em meio aos prantos, a mãe conversava com alguém que ninguém mais via. Pra completar o terror, algo ou alguém passara, repentinamente, a chave no quarto pelo lado de fora. Sem conseguir ver nada mais o que acontecia por trás da porta, brigava com a mente para não imaginar as cenas de horror por trás dos gritos de dor que ecoavam pela casa…


A pior historia de terror não é sobre fantasmas. É sobre as despedidas que jamais entenderemos. Jamais.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O jardim

Encostei no vidro emperrado da janela. Na verdade, acho que encostei, mas acredito bem mais que fui levada por uma força invisível que quase me apertou naquele vidro e me fez ficar ali por horas (ou dias). Do lado de fora, à vista, o jardim parecia ainda mais abandonado. Olhando de primeira, enganava os olhos porque tudo era verde e quase brotava, mas as muitas semanas que passava ali, revelavam que jamais brotaria nada o que dele faria de fato um jardim. Os projetos, as intenções, as flores que imaginei assistir nascendo, estavam estáticos. O tempo, as pessoas, a história, nada mudava o dia em que a natureza abandonou aquele espaço da casa à sorte e ao cuidado de sabe-se-lá-o-quê. Minhas costas doíam muito e todos os ossos do meu corpo reclamavam quando, em vão, tentava me movimentar. Parecia um indício de que o quer que tivesse feito com que o tempo girasse (ou parasse) de forma diferente naquela casa, terminara me atingindo. A pressão do corpo quase inteiro colado no vidro que no próximo minuto poderia se espatifar, só me deixava espaço pra um pensamento: 


O jardim me olhava ou era eu que olhava o jardim?


Por um momento, um clarão de lucidez me mostrou flores podres e um espaço escuro e vazio. Em um misto de pânico, incerteza, medo e dor, comecei a chorar e esperei que caíssem lágrimas. Sem saber exatamente em que momento sairiam do corpo e bateriam no chão. Ou se.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Batimentos

Poucas coisas me interessam além da respiração e, das coisas físicas, tenho aprendido a valorizar mais o batimento tranquilo do coração, o correr do sangue nas veias, a lucidez de um cérebro inatingido, o perfeito funcionamento do corpo que vive ou que teima em viver.


Hoje, só quero que as veias continuem sendo estradas para oxigênio, nutrientes e tudo o mais que faz o pulso continuar quente, o coração bater cadenciado e os olhos, abertos, me olharem do jeito que eu já conheço e que não quero me despedir.


Vou repetir a fala sobre o coração, porque hoje nada é mais importante do que ele ser um combatente furioso, teimoso, insistente. O último a ficar em pé na batalha, o que na glória magica do momento, mesmo cansado de tudo que passou, se mantén firme em meio a todo o caos do próprio corpo, erguendo uma bandeira verde e fazendo, finalmente a paz com tudo o que permite que continuemos nossas conversas e que tenhamos bons longos anos pela frente pra eternizar os momentos, aqueles que fazem os encontros desse mundo valerem a pena.


E, realmente, poucas coisas me interessam além da respiração, mas, das coisas físicas, certamente, teu coração (sadio, vigoroso, resiliente, recuperado, forte, quente).

Resistente.

domingo, 24 de outubro de 2021

Era pra ser sobre amor, mas mudou no caminho

Ela achou que não importava, mas também achou decadente e triste o bar.

Nas paredes descascadas, nas fotos dos heróis mortos, na música que repetia e repetia o mesmo som, insistentemente. E na própria agonia em voltar ali sozinha. Insistentemente.

Ela só bebia água, achando que assim, a ausência  de toxinas não alteraria a lucidez que queria, que idealizava, que sonhava.

Um dia apenas, um dia. Apenas um de sossego despretensioso, de ficar olhando o vazio e deixar que as coisas acontecessem ao seu redor sem atingi-la, sem convidá-la, sem esperar que colaborasse ou de alguma forma alterasse o rumo do mundo. Um dia inteiro sem participar de nada e sem que nada, de volta, acontecesse. Um dia…

(Se fosse um roteiro, diria que suspirou profundamente enquanto levava o copo à boca, com um olhar vago e vazio, ignorando tudo o mais que acontecia ao redor e sendo também felizmente ignorada). 

Do gole de água pura e cristalina, invadindo o seu corpo e limpando, de alguma forma, umas semanas ruins, desejou ter a fé necessária pra agradecer aquele momento, onde as paredes descascadas e os quase heróis que lhe sorriam em fotos congeladas no tempo que se perdeu, refletiam perfeitamente o que imaginou ser sua própria alma. Começou a rezar, mas não lembrou da oração. Trocou pela música que tocava e que sempre gostou da letra. Quem sabe assim funcionaria também?

 Acho que sorriu. 






sábado, 9 de outubro de 2021

Estrela sem luz

Aqui e ali, o tempo me mostra que meu colorido é mais “chiaroscuro” do que preferiria. 

Semore gostei do jogo das sombras, brinco, medito, me faz pensar e encontrar semelhança com  meus dias, da busca constante, do constraste, da vida inteira e de agora, em que nesse momento, claro, me deito e tento dormir, ignorando as trevas, sempre à espreita, sempre sombreando os momentos que poderiam ser de pura luz, pq eu insisto na luz, vivo buscando, querendo, ansiando, tentando e tentando até o limite. Até meu limite. Sem querer que um dia, talvez, eu desista, e aceite, a preta estrela, mais parecida comigo hoje, muito mais parecida do que gostaria.

(mas as más notícias nao param de chegar) 

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

O barato do vinho com Blue Monday

Estou dançando, é quarta-feira e nem esperava sair de casa, mas estou dançando e a música daqui é ótima. Tive a impressão que repetiram “Blue Monday” umas quatro vezes, mas acredito que muito álcool ou muito tempo de música foi o que passou essa impressão.

Minha amiga se prepara pra pedir mais uma cerveja e eu digo que não quero, tentando preservar a pouca lucidez que ainda me mantém acordada.

Queria que essa ou outra banda “new wave”  continuasse tocando a noite inteira, mas resolveram trocar pra algo novo e esse outro som não me agrada em nada. Absolutamente nada.

Estou bem cansada já e termino ficando impaciente com o barulho, com as pessoas e com o ambiente. E eu sei bem, vivo esse filme, quando é a hora: recolho bolsa, corpo, calço os sapatos de novo e sem conseguir ficar, vou embora. 

De novo.