terça-feira, 24 de maio de 2022

Kierkegaard (editar)


Quando me deito na grama, me sinto bem.

O contato com a terra, com o desfile das coisas que acontecem ao meu redor, com as sensações, os cheiros, tudo que desperta meus sentidos, tudo que porventura despertará, me traz simplesmente pro que está ali.


Fecho os olho, deixo o sol bater ligeiramente, permito-lhe queimar com suavidade a minha pele, trazer calor pra minha alma e iluminar meus pensamentos.

Respiro, acalmo, sorrio, vivo. 

Escuto o bater das asas da borboleta que passa porque estou completamente aqui e aqui consigo notar a delicadeza de coisas que são sutilmente maravilhosas. Maravilhosamente sutis. E todas as cores que a tornam bela. 

Se eu piscasse, a perderia. 

Se eu piscasse, não adoraria ela. 


De coração mais que de olhos abertos, me deleito com o momento, com o instante das coisas. Com os sabores que despertam, os arrepios que me fazem sentir, o calor, o frio, as sensações no meu corpo, o tato, as possibilidades existentes em um gole de um café quente e delicioso, em abrir um livro que sempre quis ler, folhear cada página, tatear um objeto querido, ser invadida por uma música, abraçar alguém querido, seu cheiro, corpo, voz. Existência.


Boa amante que sou de toques certeiramente marcantes, amo essas marcas que deixam, impressões. Também gosto do risco, do traço, de começar uma aventura com o lápis, sem saber pra onde me leva e sem saber pra onde vai e, com susrpresa, dá forma ao nada. Criar pra amar. 

Construir. 

Pontes, prédios, casas, relações. 

Percorrer caminhos, deixar pegadas no chão.

Amar corpos, trejeitos, sorrisos, gestos e tudo o que me despertam e fazem sentir. 

Amar almas que transcendem a incorporeidade, despertando emoções vivas, tão vivas que conversam comigo agora. 

Me apaixonar por elas. 


quinta-feira, 19 de maio de 2022

Se eu pudesse escolher a foto,

As pessoas já estavam há muito tempo no enterro. O corpo dela já havia sido consumido completamente pelo fogo e eu imaginei que àquela hora já deveria estar descansando numa urna funerária. Estranho estar pensando isso agora. Estranho estar pensando. Estranho estar ali. 

Algumas pessoas me cumprimentaram no enterro, mas senti que a maioria se perguntava quem eu era. Um idosa simpática foi a única que perguntou meu nome e se aproximou achando que eu também merecia um abraço. Estranho estarem se perguntando se eu merecia o abraço. Estranho não ter recebido mais nenhum.

Enquanto as pessoas falavam e dialogavam, alguma fotos, lindas fotos, passeavam por um slide. Todas elas tentando demonstrar sua vivacidade e energia, mas nenhuma delas fazendo realmente jus à isso. À ela. Ou realmente espelhando o que de verdade ninguém via. Estranho saber que aquelas seriam suas últimas fotos. Estranho não ter participado da seleção. Estranho não terem me pedido a foto de nós duas, abraçadas e sorrindo, que estava na cabeceira da cama. Estranho que fosse a minha favorita e possivelmente a dela. Estranho ninguém saber disso. Estranho não estar na tela.

Eu me perguntava se me deixariam tocar na urna porque ninguém ali sabia onde ela queria que fossem jogadas as cinzas. Estranho que possivelmente não me deixariam atender seu último desejo. Estranho que outras mãos e outras pessoas que não a entendessem e amassem como eu provavelmente a devolvessem ao vento fora da colina onde fizemos amor pela primeira vez e que ela me pediu em namoro, enquanto me beijava com gosto de uva nos lábios. Estranho que esteja contendo minhas lágrimas de agora e desde o começo por puro preconceito. Como contivemos nossa vontade de andar de mãos dadas. Estranho que tivéssemos passado nosso tempo respeitando o preconceito deles. Estranho o preconceito. Estranho eles.

Eu queria gritar pra todos o que me atormentava. Eu não sabia ao certo, mas os sinais apontavam uma verdade cruel. Uma luta perdida e a culpa que carregava por nao ter percebido. Enganosamente, achei que estava tudo bem no momento em que ela me abraçou pela última vez com os olhos marejando e disse que sentiria saudades. Para mim, seria apenas uma viagem de carro a trabalho, a terapia estava evoluindo, os remédios controlados já estavam sendo retirados pelo médico, a última tentativa de suicídio já não acontecia há dois anos e os psiquiatras falavam em alta. Estranho que todos ali achassem que havia sido um acidente. Não havia nada que apontasse que ela precisou desviar de algum obstáculo na estrada. Tudo indicava que o que ela não conseguiu foi se esquivar do desespero de outros obstáculos. Dos que a impediram de viver, de sentir, de ser. Os obstáculos deles.  

Estranho que estejam chorando agora por ela, quando foram eles que a mataram. E estranho que eu seja a única daqui proibida de chorar. 

terça-feira, 17 de maio de 2022

O que brilha mais que esmeralda?

Francesca dispensou a auxiliar e, diante do espelho, iniciou um ritual próprio e particular. 

Assim, soltou primeiramente os cabelos que estavam presos na faixa e deixou que eles caíssem livres e soltos pelas costas, pelos ombros, pelo busto. Sorriu. Tinha muito cabelo.

Depois, ainda com um meio sorriso no rosto, começou a desabotoar os botões do corpete nas costas. Tentou, inutilmente, desempenhar a tarefa com charme e graça. Sorriu de novo. Impossível. O corpete, frouxo, foi retirado por cima da cabeça ao som de novas risadas.

Em seguida, teve a inconsequente ideia de despir a longa saia, a meia de cetim e a delicada peça íntima de uma vez. Cambaleou algumas vezes, quase caiu, resolveu que deveria se sentar e rendeu-se ao riso novamente, ao mesmo tempo em que as três peças desciam até o ponto em que descansassem completamente aos seus pés, emaranhadas e juntas, libertando-a quase totalmente de suas vestimentas. Quase. 

Ainda com a sombra do último sorriso no rosto, voltou ao espelho. Restava o brinco. Uma peça linda, de esmeralda, um presente amoroso que brilhava e cintilava, mesmo que a baixa luminosidade das poucas velas que preferia acender à noite tornassem o feitio duvidoso, o que a fez quase acreditar que o ilusionista havia enfeitiçado não o objeto, mas seus olhos. 

Não tirou o brinco. 

Mergulhada em seu próprio encanto, Francesca se dirigiu à janela e abriu as portinholas. Recebeu o frio da noite em cada recanto do seu corpo e sussurrou contente: "obrigada". 

(No canto, se a vissem, saberiam que uma jóia não causa esse efeito; saberiam se fossem sábios). 


sexta-feira, 13 de maio de 2022

Rosa e teus cabelos de campos de trigo


É uma rosa, apenas uma rosa, mais uma rosa, mas também a rosa, a única rosa.

Ela não estará ali, no campo, no roseiral adiante, no meio das outras rosas do jardim.


Também não se esconde, não se diferencia, mas os olhos que a enxergam sempre notarão nela seus tons especiais.


Desse jeito assim, é preciosa, singular, a rosa.

Tornamo-nos amigos, cuidamos um do outro, um espinho me feriu, preferi me retirar: tive medo de ser ferido de novo.


Viajei, estou na Terra, um aviador me desenhou uma caixa, guardei nela um carneiro, tenho uma velha preocupação: os baobás do meu planeta precisam ser podados e eu sinto muito. Não quero vê-los cortados, exterminados, dominados, mas não podá-los significa pôr tudo em risco. 


Ainda aqui, conheci uma raposa e dialoguei com uma serpente. A raposa me trouxe sabedoria, verdades e saudades. Pediu que a cativasse, mas foi ela quem me cativou. Disse que queria ver meus cabelos refletidos nos campos de trigo e eu achei lindo. Me apaixonei. Com poesia, também me fez perceber que não encontraria a minha rosa no meio de outras rosas, por mais semelhantes que pudessem parecer. Já a serpente me rodeou com ameaças de morte. Cruéis verdades. Chorei o inevitável, consegui não morrer, decidi voltar. 


Voltei, sim. Voltei. De fato, não morri. Apenas voltei. Havia outros planetas, havia um universo, estrelas lindas que queria visitar, raposas sábias pra conhecer e por quem me apaixonar, o infinito a ser destino. Voltei. Estou a caminho! Terra, chão, um cheiro de grama conhecido e a rosa. 

Que linda.