quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Chiaro

As coisas mudam muito rápido se você parar para perceber.

Mas eu não estou interessada.
Não nas grandes mudanças, na aceleração dos momentos, na dilaceração dos segundos, nos exorbitantes eventos do mundo, no turbilhão, monumentos, explosões nem lampejos. 
Não.
Eu quero dias comuns.
Quero acordar e ir dormir sentindo a saúde dos meus. 
Quero a minha filha feliz, rodopiando, sem queixas, sem reclamações. 
Quero seu coraçãozinho forte e todo o corpinho crescendo, crescente, desabrochando e ficando gigante. 
Quero um café, um livro, um bom filme para assistir.
E o teu abraço de bom dia. 
(…)

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Outro encontro na Sertanense (editar)

Eu me lembro, embora não com precisão.

Quando fecho os olhos, quase sinto os paralelepípedos antigos encostando no solado do calçado, os odores desagradáveis mas afetivamente conhecidos, vislumbro as cores de tintas desbotadas dos edifícios, a beleza consumida das ruas projetadas para nunca serem abandonadas.

Eu vejo as lojas passando à minha direita e à minha esquerda, farmácias, padarias, lanchonetes seculares, uma ponte de ferro atrás unindo um lado ao outro da cidade, os barulhos dos passos atravessando da Rua Nova à Imperatriz, aquela parede com poesia de Ariano pichada e com cheiro de mijo que poderia evitar passar perto, mas que era irresistível.

Vejo as igrejas nas ruas, as pequenas praças de fontes vazias, os pombos no alto, no céu azul ensolarado, a quantidade enorme de transeuntes, um mar gigante de pessoas e indigentes transmutando papelão em casas. 

E eu me lembro, embora não com precisão, das tantas  vezes em que caminhei, senti e vivi o centro da cidade. Do cheiro dos sebos, dos garimpos animadores, do brilho do vidro e pulseiras dos relógios enfileirados nos camelôs, dos ônibus passando com menos cuidado, menos conforto e mais passageiros do que deveriam. 

E entre rostos e buzinas de carros, também me vejo, ansiosa, em frente ao cinema São Luís, tomando todas as direções  que me levam ao teu encontro. Cabelo longo, quase cobrindo a mochila das costas, inconsequentemente de salto e de preto. Invariavelmente de preto

Da nossa família fosse a única que resolveu morar longe, saindo de Olinda para Boa Viagem. Da minha família fosse aquela que me acolheu e adotou quando minha mãe quase morreu na mesa de parto. Da minha família, sempre lembro que teus olhos eram os mais compreensivos e o teu apoio incondicional. 

E é claro que os caminhos da cidade continuam me levando  ao teu encontro, mesmo que a definitividade da morte não faça disso possível, mesmo que seja com gosto de lágrimas e um amargor de saudade que eu te vejo me esperando, em frente à lanchonete Sertanense da Rua Nova, para dividirmos um lanche, um misto, uma cartola e uma coca gelada, sentadas no balcão.  


domingo, 5 de novembro de 2023

Uma saudade chamada xadrez (editar e melhorar o final pra sábado)


Eu me lembro daquela mesa de xadrez, naquele encontro de outra hora em que, vivo, você me ensinou os primeiros movimentos.

E eu me lembro de não ter apreendido sequer uma norma que conduz o jogo, mas de ter achado fascinante e de continuar achando fascinante mesmo agora.


E eu me lembro que era noite, uma viagem, uma cidade, Cidade das Flores, em que impensadamente você nos carregou pra conhecer.


Eu lembro da longa distância de lá até nossa casa, do medo nas curvas da Serra das Russas, do play do k7 no stereo do carro, de revezarmos Xuxa e Roberto Carlos, das cruzes depositadas nas beiras das estradas. 


Eu me lembro de ter sido embalada pela música, de cada pose pras fotos, de ter comido pizza à noite, de termos dormido todos no mesmo quarto e de um parque de nome estrangeiro, de um arquiteto holandês.


Da praça cheia de flores, dos canteiros enfeitando a avenida, das arvores altas, pinheiros tocando as nuvens, da saudade na partida e de ter torcido pra voltar.


Hoje, vivendo na cidade que me encantara e revisitando o local em que quase aprendi xadrez, não encontrei a mesa no hall de recepção da entrada.

Percorri os corretores, revivendo doces momentos fantasmas, as fotos antigas nos quadros emoldurando tempos que não voltam mais. Pisos decorados, bancos vazios, parques infantis sem gritos, janelas fechadas nas casas, um salão de jogos empoeirado no final de tudo. 

E a mesa. 

Gavetas ao redor, bispos, reis, rainhas, cavalos, torres e sorrisos fantasmas a esperar um lance. 

Desoladoramente vazia. 





quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Praia espacial (editar)

Depois de percorrer caminhos e distâncias estelares, ela finalmente pousa em um pequeno planeta.

Após horas intermináveis de verificação de tudo que envolve sobrevivência, pisa, com cautela, no que parece uma praia.


A paisagem litorânea e abandonada, as ondas batendo nas pedras e o som incomparável do oceano, incentivam-lhe a retirar o encorpado capacete.


Seus cabelos, pesados e desacostumados a movimentos de liberdade, dançam à primeira rajada de vento.


A astronauta inspira, enche os pulmões, prepara-se. 

No peito, o primeiro ar respirável que encontrou em suas andanças pelo espaço. Permite que ele more em seu corpo, como um reforço, um suplemento, um elixir, um amparo.

Em seguida, liberta.

As ausências, as saudades, os sonhos que deixou pra trás. 

Liberta a culpa, os desalentos, os arrependimentos, o pesar. Os caminhos que não seguiu, a vida que não permitiu, os momentos que não teve. E aqueles que nunca terá. 


E a cada entrada e saída do ar no corpo, em cada movimento de respiração e inspiração, naquele ciclo natural e fisiológico, nas idas e vindas, na permissão e negação, na chegada e na partida, nos caminhos e nos desvios, ela revive sua trajetória, assimila suas escolhas, reverencia com respeito as direções que a trouxera ali, olha ao seu redor e no meio do caminho entre um pequeno sorriso e uma diminuta lágrima, compreende. 


A astronauta enxuga os olhos e caminha até o oceano. 

Retira no que parece um bolso em seu cinzento traje um objeto longilíneo que deposita no mar.

Enquanto espera, fotografa na mente a paisagem e o movimento das ondas daquela pequena praia do espaço. Com um bipe, o objeto retorna. Há uma mensagem piscando na tela:


“Potencialmente mergulhável. Pode entrar”.