quinta-feira, 19 de maio de 2022

Se eu pudesse escolher a foto,

As pessoas já estavam há muito tempo no enterro. O corpo dela já havia sido consumido completamente pelo fogo e eu imaginei que àquela hora já deveria estar descansando numa urna funerária. Estranho estar pensando isso agora. Estranho estar pensando. Estranho estar ali. 

Algumas pessoas me cumprimentaram no enterro, mas senti que a maioria se perguntava quem eu era. Um idosa simpática foi a única que perguntou meu nome e se aproximou achando que eu também merecia um abraço. Estranho estarem se perguntando se eu merecia o abraço. Estranho não ter recebido mais nenhum.

Enquanto as pessoas falavam e dialogavam, alguma fotos, lindas fotos, passeavam por um slide. Todas elas tentando demonstrar sua vivacidade e energia, mas nenhuma delas fazendo realmente jus à isso. À ela. Ou realmente espelhando o que de verdade ninguém via. Estranho saber que aquelas seriam suas últimas fotos. Estranho não ter participado da seleção. Estranho não terem me pedido a foto de nós duas, abraçadas e sorrindo, que estava na cabeceira da cama. Estranho que fosse a minha favorita e possivelmente a dela. Estranho ninguém saber disso. Estranho não estar na tela.

Eu me perguntava se me deixariam tocar na urna porque ninguém ali sabia onde ela queria que fossem jogadas as cinzas. Estranho que possivelmente não me deixariam atender seu último desejo. Estranho que outras mãos e outras pessoas que não a entendessem e amassem como eu provavelmente a devolvessem ao vento fora da colina onde fizemos amor pela primeira vez e que ela me pediu em namoro, enquanto me beijava com gosto de uva nos lábios. Estranho que esteja contendo minhas lágrimas de agora e desde o começo por puro preconceito. Como contivemos nossa vontade de andar de mãos dadas. Estranho que tivéssemos passado nosso tempo respeitando o preconceito deles. Estranho o preconceito. Estranho eles.

Eu queria gritar pra todos o que me atormentava. Eu não sabia ao certo, mas os sinais apontavam uma verdade cruel. Uma luta perdida e a culpa que carregava por nao ter percebido. Enganosamente, achei que estava tudo bem no momento em que ela me abraçou pela última vez com os olhos marejando e disse que sentiria saudades. Para mim, seria apenas uma viagem de carro a trabalho, a terapia estava evoluindo, os remédios controlados já estavam sendo retirados pelo médico, a última tentativa de suicídio já não acontecia há dois anos e os psiquiatras falavam em alta. Estranho que todos ali achassem que havia sido um acidente. Não havia nada que apontasse que ela precisou desviar de algum obstáculo na estrada. Tudo indicava que o que ela não conseguiu foi se esquivar do desespero de outros obstáculos. Dos que a impediram de viver, de sentir, de ser. Os obstáculos deles.  

Estranho que estejam chorando agora por ela, quando foram eles que a mataram. E estranho que eu seja a única daqui proibida de chorar. 

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