terça-feira, 16 de maio de 2023

Mil quatrocentos e sessenta e um dias e aquele dia.

Ao chegar em casa, coração em disparada, observou que as luzes estavam quase todas apagadas e não havia ninguém na sala. A surpresa foi tanta e o espanto ainda maior que nem racionalizou quando enveredou na missão quase impossível de correr no mais profundo silêncio pelas escadas. Ao menos abandonou os sapatos de salto na porta de entrada - o que lhe pareceu depois um ponto de lucidez na história que decidiu contar agora.

Quatro anos. Quatro anos e aquele dia. Não façam as contas, faço questão de dizer: quatro anos são mil quatrocentos e sessenta e um dias. Mil quatrocentos e sessenta e um dias em que a sua vida havia mudado de uma forma completa e absoluta. Em que havia aprendido a respirar de forma entrecortada, respirar por ela depois. Quatro anos em que ouviu o primeiro choro de sua filha, em que colocou ela no peito e achou que aquele sempre seria o melhor lugar pra ela ficar e descansar - ou que pelo menos esperava que fosse. Quatro anos em que a embalou todas as noites e as madrugadas adentro e em que cada abrir e fechar dos olhos daquele ser, tão seu e tão não seu também, torceu pelos melhores sonhos. Quatro anos... e aquele dia.

Ao abrir a porta do quarto, lentamente, viu que seu marido embalava a filha nos braços, sentado ao lado de sua caminha. A cadeira de balanço rangia um pouco - pelo peso daqueles dois corpos que mal cabiam ali, cumprindo uma velha tarefa que pela primeira vez não participava. O rumo ao mundo dos sonhos da sua filha. Fechou a porta e sentou nas escadas. O aperto, familiar e conhecido, tão recorrente na maternidade, não demorou pra ocupar o espaço já conhecido no peito. Culpa por não ter estado presente, mas mais do que isso, a mistura que sabia - experimentaria ainda mais no decorrer dos anos - a certeza que sua filha, apesar de sua filha, não era parte dela. Dissociar quando você está tão mergulhada ainda na maternidade é difícil e não sabia se seria fácil um dia. Talvez querer proteger e estar por perto é inerente, é indissociável, é daquelas coisas sem explicação que você entende quando se trata de mãe. Ou não, fique a vontade. Vou trabalhar na terapia. 

Mas toda mãe precisa estar inteira e todo porto, antes de ser um porto, precisa ser estável e seguro pra que cumpra sua missão. Ela não poderia esquecer dos próprios sonhos e projetos e da pessoa que também era e queria apresentar para sua filha, além da mãe. 

Resolveu contar a história transmitida pelo marido da primeira noite em que Eva, sua filha, dormiu sem ela. "Tranquila e calma" porque tinha certeza que ela estaria ali no amanhã, quando abrisse os olhos. Que estaria ali.

Veio-lhe à mente, rapidamente, uma história que lhe foi contada por uma recém adquirida amiga que estava saindo da casa dos pais e como o processo estava sendo difícil para eles. Lembrou que ao deixar a amiga em casa, de carona, cheia de caixas pra mudança, a mãe a esperava pra carregá-las, mesmo - talvez-  discordando dela. Ela estava ali.

Lembrou também da própria história contada pelo professor do curso, sobre os recortes que a mãe guardava, emplastificados e catalogados dos textos que escreveu ao longo dos anos, e o quanto foram importantes para a criação de um projeto seu. E a torcida. 

Então esboçou esse texto com algumas lágrimas que precisavam sair e desejou, de coração, ser a mãe que, um dia, mesmo sem concordar, ajudaria com as caixas ou aquela que guardaria todos os textos. 

Quanto aos sonhos, já torcia.  

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