terça-feira, 16 de maio de 2023

Monocular

Eu explodi mas não morri. Em plena BR 232. O ano era 2020, janeiro, dia 17, dois meses antes de iniciar a fatídica pandemia. Eu explodi e não morri, mas não esqueço. O sangue quente no rosto, o vôo, o impacto com o chão, os gritos entre as dores: Marcos, Marcos! A escuridão ocupando metade do rosto, as sirenes, dor, dor Dor.

Eu explodi mas não morri e tudo o que eu queria era pegar o caminho de casa, cruzar as rotas e trajetos que me separavam do meu lar. Um calibragem, um pneu, um detalhe. E é tudo o que se precisa, né? Um detalhe bem no meio do que deveria ser só mais um dia. 

Eu explodi mas não morri, tenho bandagens em todo o corpo. Curativos, emplastros, durex, esparadrapos, o "escambau" que decidem os médicos. Coisas que parecem, esperançosamente, me curar. E curam?  Passam dias, passam noites,  não passam as dores, quando vou voltar? Quando vou voltar a enxergar? E pra casa? Quando vou voltar?

Eu explodi e não morri, mas me parece que perdi pra sempre um olho. O esquerdo. O que me permitia cruzar com segurança pelas estradas. O que me permitia ser caminhoneiro. O que me permitia trabalhar.

Mo-no-cu-lar, como escreve? Tenho que me acostumar com a palavra. É agora o que sou, o que faço. O que o INSS usou pra me manter encostado. Aposentado.

Eu explodi mas não morri, estou distante da estradas, tenho 44 anos, estou vivo, acordo todo dia e agradeço. Rezo? Sempre fui ruim em decorar orações, mas rezo com o que conheço. Obrigada por me levantar, obrigada por me deitar ao final do dia. É todo o meu repertório, mas até que serve. Acho que serve pra Deus porque serve pra mim. 

Eu explodi e não morri, mas sabe? Posso compartilhar contigo? Não é fácil. Não é nem pelo olho, o que ficou é suficiente, mas é pela limitação. Pela impossibilidade. Não poder estar inteiro, nao poder fazer o que sou bom de fazer. 

Carregar, descarregar, dá destino, devolver. Tantas coisas já viajaram comigo pela estrada, aposto que até algo teu. Quer ver? Me diz só uma coisa. Qualquer coisa. Qualquer coisa antes de 17 de janeiro de 2020. Qualquer coisa. Qualquer coisa antes do dia em que eu explodi, mas não morri. 


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