segunda-feira, 26 de junho de 2023

Protagonista

Já cansei de apresentar-me em um palco para um teatro vazio ou para um público que nunca compreendeu meus vinte anos de teatro. Também vivenciei espetáculos cheios e vivi aplausos, ainda os ouço, ainda acenam para mim. Enquanto retiro a maquiagem e os cílios postiços que ocultam a minha atual ausência de pelos, continuo me sentindo o Rei Lear da Grã Bretanha, orgulhoso por ter sido escolhido a protagonizar uma peça shakespeariana, quase ignorando o fato que pela primeira vez interpretei um idoso. 

Tinha 24 anos quando pisei no palco pela primeira vez. Tenho 44 anos e talvez esteja pisando uma última. Embora dedique-me aos tratamentos com afinco, acredite na ciência dos homens e tenha meus acordos com Deus, há um limite entre querer e atingir uma coisa. Então, aos 44, pálido e doente, passo bem por um idoso rei inglês condenado à morte. E vou caminhando seus passos em cada quadro através da minha atuação e vivendo em um curto espaço uma vida que apenas ensaia para o  suspiro final. Tão determinante como o término de uma peça, o abaixar das luzes e o fechar das cortinas.

A verdade é que morri tantas vezes no palco e me entreguei genuinamente a todas as mortes que vivi, que a notícia que paira, ronda e espreita meus dias, não me é novidade. O próprio tratamento, as dores, já experimentei na pele com outro nome como ator. Poucas coisas me surpreenderiam, entenda. Poucas coisas. Estive em muitos começos e em muitos finais. Estou sempre esperando o momento em que as primeiras luzes me avisam que é hora de entrar no palco e também aquele em que as últimas me intimam a sair. 

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