segunda-feira, 6 de junho de 2022

I - Um beijo ondulante, um abraço afogante

Tania,

da janela da minha cozinha, onde estive lavando os pratos, encarei as paredes do meu quintal dos fundos, repleto de registros que pintei em um surto. São frases, letras de músicas, diálogos de filmes, entre outras referências que colacionei na mente sem sentir - certamente porque marcaram.

A verdade é que tenho tido receio de visitar esse espaço e especialmente de reler o que deixei escrito. Me parece o mesmo receio que sinto em mergulhar em mim às vezes. Você sabe, gosto de me manter no controle, minha rebeldia não é estrutural. E parece que alguns sentimentos desobedecem qualquer ordem, não é? Desestrutura, balança, derruba. O que vem com o luto é bem assim. Completamente insubordinado. E com um duplo luto então? Meu retrato. 

Não quero reler nada que escrevi agora, Tania, nem queria escrever sobre também, mas é que você me escreveu uma carta perguntando como eu estava e você é uma das poucas que me pergunta isso, porque a maioria já olha pra mim e supõe que estou bem. Então resolvi te contar a verdade. E a verdade é que eu nem sei. Ando oscilando, mas acho que o normal é mais esse do que o outro - o ideal. Oscilar como o movimento do oceano. Como o mar. Quem dera as tábuas de marés e solunares também me contassem como estarei amanhã. Minha vida por algo assim. Mas por hoje, tudo bem. 

E sobre você? Quero saber tudo. Pra me fazer feliz: nada menos que uma carta longa. Que me contes aventuras, desventuras e alguns segredos. E até sobre aquele momento em que esteve lavando os pratos. O que pensou? Por onde andou? Por quais caminhos foram tua mente? Consegues descrever? Podes me falar? Já me sinto curiosa, querida irmã. Por aí anda chovendo? Por aqui, as gotas caem sem parar e parecem querer lavar o nosso mundo. O que elas têm causado no teu também?

Um beijo oscilante, um abraço de afogar, 

Mar. 


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